Guião para uma história que tenciono contar aos meus netos.
A Bela com os filhotes no interior da minha draga.
Para quem
aprecia, o tema das viagens pode parecer inesgotável. Reviver as que se fizeram
”partilhando-as” com familiares e amigos, falar das que gostaríamos de fazer ou
dos planos daquela que já está na calha, são um dos meus temas de
conversa favoritos. Recentemente, ao iniciar o prólogo de uma nova e
assim o espero, aventurosa viagem de longo curso, percorri boa parte do
IC2, de Pombal a V. N. de Famalicão, ponto de paragem obrigatória nas rotas
para o norte da Europa dado que, nesta simpática cidade, reside a minha Isabel
(Bela) com o marido Vasco e seus filhotes André e Catarina. Ao atravessar a
localidade da Malaposta ocorreu-me a seguinte questão: Como seria viajar no
“antigamente”? Nos dias de hoje, a facilidade, comodidade, rapidez e segurança com
que saltamos de um continente para outro, tornaram as viagens coisa de senhoras!
Mas, como seriam há apenas cem anos, no tempo dos nossos avós, quando o meio de
transporte comum eram as diligências, charretes puxadas por parelhas de
cavalos ou mulas? Na verdade todos somos descendentes de grandes viajantes. Lá
bem nos primórdios, viajar não era opção, tinha mesmo que ser! Os hominídeos
subsistiram durante centenas de milhar de anos deambulando através de vastas
zonas de floresta, de savanas mais tarde, recolhendo as folhas e frutos ou
caçando os animais de que se alimentavam. Com a sedentarização, a humanidade
terá dado um importante salto civilizacional mas, mesmo então, os nossos
antepassados nunca deixaram de se ver forçados a palmilhar longas distâncias. O
esgotamento dos solos, a meteorologia desfavorável ou desastres naturais como
erupções vulcânicas, sismos e inundações, longos períodos de glaciação, secas, fogos
espontâneos, obrigavam-nos nos a longas caminhadas. Buscavam segurança e abundância
nas zonas ribeirinhas ou em alta montanha, conforme a normal sequência das
estações do ano. Os movimentos de transumância, a fuga de zonas de conflito
como ainda hoje acontece e até a participação em rituais civis ou religiosos como
casamentos e funerais, fizeram dos nossos antepassados viajantes compulsivos. Tudo
me leva a crer que o gene das viagens nos foi transmitido de forma indelével.
Basta perguntar a alguém que sonhe com “el gordo” de uma qualquer lotaria o que
faria se a sorte lhe batesse à porta. A primeira opção pode não ser viajar mas,
via de regra, esta é uma hipótese a considerar!
Adivinha-se
que num passado longínquo a Vida não era fácil no nosso relativamente jovem
planeta. Contudo, os deuses nem sempre estiveram contra o homem. Uma centelha
de prodigiosa inteligência levou alguém a notar que, exceptuando as lesmas,
caracóis e aparentados, a maioria dos animais era capaz de nos fugir!
Percorriam grandes distâncias, rapidamente e sem grande esforço aparente.
Domesticados e domados os mais velozes e fortes e inventada a roda, a humanidade
terá dado o maior passo logo a seguir à descoberta do fogo. O nosso mundo
tornou-se mais pequeno e os humanos puderam então começar a viajar com alguma
comodidade e conforto, agora também por prazer ou simples curiosidade. Afinal,
o bichinho das viagens estava-nos “na massa do sangue”! Mas primeiro tivemos
que aprender a montar e dirigir um grande número de quadrúpedes, e mesmo
bípedes; já vi gente “cavalgando” emas. Quanto aos répteis, mantiveram-se mais
ou menos a salvo da escravatura até um nosso ex-presidente descobrir que era
porreiro viajar empoleirado no dorso de uma tartaruga! De entre toda a
bicharada que desde há milénios partilha connosco o fado da existência, ofereço
ao cavalo o ponto mais alto do pódio. Tem sido inteligente e leal amigo, camarada
de armas em encarniçadas pelejas, a força do lavrador, parceiro de moleiros e almocreves, aliado de campinos, gaúchos e cangaceiros,
personagem de inúmeras histórias e filmes, montada de D. Quixote e João Semana. No que
toca a performance, destreza e velocidade, é o Ferrari dos animais! Já quando
se trata de autonomia, distâncias percorridas e quantidade de carga transportada,
louvemos os camelos e dromedários, equivalentes dos modernos Camiões TIR das
regiões inacessíveis ou desérticas. Se pensarmos no número de passageiros
transportados (em palanques), sobretudo turistas, ou na movimentação de cargas
pesadas, o elefante pode ser o nosso autocarro na Índia ou potente guincho na
Tailândia. E quem não gostaria de viajar no tempo e voltar a sentir o cheirinho da terra
lavrada de fresco com arado puxado pelas juntas de bois, os tractores dos
nossos avós? Não posso terminar sem deixar uma palavra de reconhecimento a um
sem número de animais anónimos que ainda hoje, em muitas partes do mundo, nos
transportam de um lado para outro ou acarretam as nossas, muitas vezes inúteis
tralhas: Búfalos, iaques, lamas e guanacos, cães, chibos e carneiritos e até as
renas do Pai Natal e a mula da cooperativa. A todos tiro o meu chapéu.
E nós tugas,
gostamos de arejar ou nem por isso? Sim, sem dúvida, apreciamos viajar. É
assim, foi sempre assim desde há séculos, quando aprendemos a lançar a
barcoleta à água com um lençol a drapejar no mastro! Com crise ou sem ela, em
tempo de vacas gordas ou mesmo sem vaca nenhuma, eis-nos que continuamos a
partir, todos os dias, para além do horizonte. A pulsão da partida mora aqui; não
há canto do mundo, em terra ou no mar e quem sabe, um dia, no espaço, onde não
se encontre um português. Somos os nómadas dos tempos modernos, dar corda à
sapatilha faz parte do nosso ser e está dito!
A Mala-Posta
O primeiro
serviço público de correios remonta ao reinado de D. Manuel I. Por volta de
1520 foi criado o cargo de Correio Mor do reino que tinha por missão organizar
e manter o regular funcionamento deste serviço. Em 1606 o Ofício de Correio Mor
foi privatizado sendo adquirente a família Gomes da Mata que o explorou até ao
ano de 1797. Em 1798 foi criado o serviço de Mala-Posta. Sob administração de
um Superintendente Geral dos Correios, este serviço permitia o transporte
regular de correspondência, passageiros e mercadorias entre Lisboa e Coimbra
por diligência, numa viagem que durava então umas insignificantes 40
horas. Muito longe portanto dos cerca de sete dias do tempo dos “correios” a pé
e a cavalo. A grande revolução neste serviço de enorme utilidade pública e que
desde o seu lançamento sempre gozou da maior simpatia popular, ficou a dever-se
a Fontes Pereira de Melo. Com ele no comando Ministério das Obras Públicas nasce
o “Fontismo” por volta de 1852, quando teve início a execução do mais audacioso
plano rodoviário que alguma vez pensado para Portugal. Para se ter uma ideia do
que foi o “Fontismo” em matéria de rodovia, basta dizer que no início do seu
mandato existiam em Portugal 218 quilómetros de estradas MacAdamizadas e em
1887, quando deixou o governo, estas estendiam-se por mais de 9.000
quilómetros. Sem esquecer que foi ele também que, a partir de 1856, lançou a
construção dos primeiros troços de ferrovia. Deste modo, à Mala-Posta que
significa simplesmente mala de correio ou mala postal, abriram-se novas linhas
e destinos percorridos em horários cada vez mais regulares e tempos mais
curtos. Em 1859 a ligação entre Lisboa e Porto já se faz em apenas umas estonteantes
34 horas com passagem por 23 estações de muda. Isto implicava que duas
diligências viajando em sentidos opostos, cada uma puxada por 4 cavalos se
encontravam em permanência na estrada. Nas estações de muda, todas construídas
segundo o mesmo plano à beira das novas estradas, os cavalos cansados eram
substituídos por cavalos “frescos” e assim, a toda a velocidade, eram
percorridos os 14 a 15 quilómetros da etapa seguinte. Paralelamente, junto das
principais estações, surgiram estalagens e hospedarias onde os passageiros da
Mala-Posta ou diligências privadas podiam tomar uma refeição e descansar. No
final dos anos sessenta do séc. XIX com algumas concessões a privados, torna-se
possível viajar ligando as principais vilas e cidades do país. Este serviço
acaba por cair rapidamente em declínio devido ao advento do comboio. Na região centro existe uma localidade que, pela
importância que assumiu durante o período áureo da Mala-Posta lhe herdou
o nome. Trata-se da localidade da Mala Posta, situada no concelho da Mealhada, a
dos leitões e do vinho frisante, bem próximo de Coimbra, a da cabra, do choupal
e dos doutores.
Nesta vila existe um conceituado restaurante, o Pompeu, em cujas salas de jantar é possível
comtemplar reproduzidas em azulejaria antiga, bonitas cenas alusivas ao tempo e
azáfama da Mala-Posta. d teve o seu início nos anos cinquenta em Bustos, uma
pequena aldeia do concelho de Oliveira do Bairro. Desde 1963 tem as suas instalações numa antiga Mala-Posta, então
designada como Estação-de-Muda da Ponte da Pedra. A antiga Estação-de-Muda estava localizada no
lugar que veio a assumir o seu nome: Malaposta
A
Diligência
Uma coisa digna de estudar é o
aspecto das diligências que circulam sobre estas estradas.
Dois pequenos garranos puxam por cima do macadame faiscante ao sol as mais fantásticas carradas de gente e de objectos que a imaginação possa conhecer. Dentro do veículo senta-se a primeira camada de passageiros nas bancadas. Depois de todos se todos os lugares ocupados mete-se-lhe a segunda camada de passageiros, colocada exactamente em cima da primeira. Feita esta operação começa o interior do carro achar-se quase cheio, mas entre o tecto, os joelhos e os bustos dos passageiros da segunda camada nota-se ainda um espaço. Preenchido este espaço com um passageiro estendido ao comprido, passa-se a ocupar o tejadilho.
Do lado lado de fora, os passageiros são ensanduichados com as bagagens e com as mercadorias: camada de mercadorias, primeira camada de passageiros, primeira camada de bagagens, segunda camada de passageiros, segunda camada de bagagens; e de tudo isto, o que penso para os garranos, os merendeiros e os varapaus dos passageiros e, no ar, o cocheiro levado a braços pelos viajantes.
Dois pequenos garranos puxam por cima do macadame faiscante ao sol as mais fantásticas carradas de gente e de objectos que a imaginação possa conhecer. Dentro do veículo senta-se a primeira camada de passageiros nas bancadas. Depois de todos se todos os lugares ocupados mete-se-lhe a segunda camada de passageiros, colocada exactamente em cima da primeira. Feita esta operação começa o interior do carro achar-se quase cheio, mas entre o tecto, os joelhos e os bustos dos passageiros da segunda camada nota-se ainda um espaço. Preenchido este espaço com um passageiro estendido ao comprido, passa-se a ocupar o tejadilho.
Do lado lado de fora, os passageiros são ensanduichados com as bagagens e com as mercadorias: camada de mercadorias, primeira camada de passageiros, primeira camada de bagagens, segunda camada de passageiros, segunda camada de bagagens; e de tudo isto, o que penso para os garranos, os merendeiros e os varapaus dos passageiros e, no ar, o cocheiro levado a braços pelos viajantes.
Ramalho Ortigão
A Bela com os filhotes no interior da minha draga.