Histórias com nomes.
Pelos padrões de hoje, o Manuel
era ainda um menino quando “assentou praça”. Depois de uns volteios com a G3 e
umas quantas quedas na máscara com e sem pirueta, atribuíram-lhe a
especialidade de corneteiro. Na tropa, o corneteiro é o militar que, à ordem do comandante e através de toques do seu clarim, manda executar e sincroniza um
vasto conjunto manobras. É o homem postado frente às tropas em parada, mas pode
também marcar o ritmo da marcha de uma força em movimento, anuncia a toda a sua
unidade que é hora das refeições, de recolher, fazer silêncio ou levantar
(alvorada), está presente no içar e arrear da bandeira nacional, preside ao
render da guarda, presta honras militares a vivos e a mortos etç. Digamos que
se expressa numa linguagem simples que todo o militar conhece e, se não
existissem as palavras, seria o bastante para que cada um soubesse em cada
momento aquilo que o corpo militar a que pertence espera de si.
Os corneteiros
têm um treino longo e difícil, são muitas horas a soprar no clarim, instrumento semelhante a uma
pequena trompete sem válvulas, palheta ou pistons, cuja sonoridade depende do
talento do artista. Para a sua produção musical, não dispõe de outra coisa que
não sejam os lábios que aperta ou relaxa na embocadura do dito. Posso
garantir-vos que a música até pode soar bem ao ouvido do zé magala, sobretudo
quando a ordem subjacente é para descan...sar
ou vamos ao tacho. Outras vezes é muito triste, como acontece com o toque
fúnebre O Silêncio. Ao ouvi-lo, velhos ou jovens militares mergulham numa profunda melancolia, o coração transborda
de saudade e, mesmo que não tenham amigo ou familiar morto em combate, acontece que nem o mais teso consegue segurar a lagrimita! Ouçam-no no Youtube: “O toque do Silêncio = Taps em inglês”
Na guerra que nós conhecemos, a
do Ultramar, não se praticavam cargas
a toque de caixa ou de clarim como se vê em certos filmes retratando antigas cenas
de guerra. É comum dizer-se que se dança conforme a música. Nós dançávamos ao ritmo dos rebentamentos de
morteiro e rpg´s, das rajadas de kalash, degtariev´s ou ppsh e tantos outros utensílios que seria enfadonho citá-los
a todos. Nestas circunstâncias, os corneteiros estavam dispensados de
actividades ditas operacionais, reservadas aos ases do gatilho.
O Manuel sempre me pareceu o
fruto de um casual encontro entre o azar e a má sorte. Para além da pobreza
extrema, desconheço outros pormenores da sua infância. Sei sim, que ainda muito
novo se mudou de Matosinhos para o Porto a fim de trabalhar como empregado de
mesa e assim ajudar a criar irmãos mais novos como era costume na altura. Foi
no exercício dessas funções que o conheci, na tropa. Não participando directamente
em acções de combate por não ter sido essa a sua preparação, o Manuel ficou
adstrito ao serviço na messe de oficiais e sargentos e, nessas funções,
revelou-se um militar digno de louvor a todos os títulos. Competente, sempre
atento às preferências dos seus superiores, o que mais impressionava neste homem era o seu nível de delicadeza, entre o aprumo militar e a humildade bem educada.
No olhar, uma sombra de tristeza cujos porquês ninguém ousava questionar. Apesar
da confiança e amizade que granjeou junto dos seus maiores, raramente o vi
sorrir ou soltar uma graçola tão ao jeito dos seus colegas na vida civil.
Como a maioria dos outros
elementos da Companhia de Caçadores 2753, passou à disponibilidade em Agosto de
1972, regressando à terra natal (?) na região do Porto. Passaram-se muitos
anos, mais de trinta, sem que alguém soubesse dar notícias do Manuel. Sem
êxito, procurei-o no antigo endereço de jovem mancebo, por bares e esplanadas
da capital do norte. É de referir que na altura não existiam telemóveis e os
fixos não eram para todos. Evidentemente que face-book, twitter etç., nem em
sonhos.
Apareceu um dia num convívio realizado
ali para os lados de Santa Comba, para o qual se conseguiu reunir apenas um
pequeno grupo de ex-militares da nossa Companhia. Talvez por se encontrar bastante
deprimido, parecia mais apático que nunca, aparentando alguma dificuldade em
suportar a profunda tristeza que lhe ia na alma e com a qual convivia desde criança.
Falou-me por alto dos problemas
de saúde e familiares que o atormentavam. Abandonado pela mulher, desprezado
por uma filha que havia ajudado (?) a licenciar, vítima de doença oncológica
que o debilitara imenso, refugiara-se no álcool e, com esta atitude, agravou naturalmente, todos os problemas que já tinha.
Depois de dar à costa voltou a estar presente num outro encontro, este na
região das Caldas da Rainha onde compareceu, aproveitando a boleia e a companhia
de um ex-graduado da C. Caç, também ele residente no Norte. Nos entretantos,
quer através de pedidos de ajuda formulados por telefone umas vezes, por carta
outras, fui ajudando conforme a urgência dos pedidos e as minhas possibilidades.
Para a renda, para a comida, para os medicamentos e até para o selo da carta, o
Manuel estava permanentemente nas lonas.
Desfazia-se em juras, tais como, desta
vez não é para a bebida, “meu alferes”. Apesar da minha insistência nunca
consegui que me tratasse de outra forma que não fosse respeitando a ortodoxia militar.
Recebi o seu último SOS em
Janeiro último no momento em que embarcava no Sá Carneiro para visitar outro
camarada residente em S. Miguel, também em apuros devido a problemas de saúde.
O SMS dizia: “Meu alferes, tenho fome, há três dias que não como nada. Com a ajuda que me enviou mandei reparar o frigorífico … está vazio”.
Logo que que pude, entrei em contacto com a secção da Liga dos Combatentes de Leça que fez o impossível para que este camarada tivesse ajuda imediata. Referenciado para todas as instituições de solidariedade com capacidade para intervir, foi apoiado, orientado e sobretudo recebeu algum calor humano que o ajudou a levantar-se do chão. Em poucos meses renasceu o homem simples, humilde e bondoso que sempre foi. Estava no bom caminho, a ponto de ser integrado numa comunidade de ajuda para recuperação de outros com problemas idênticos.
Logo que que pude, entrei em contacto com a secção da Liga dos Combatentes de Leça que fez o impossível para que este camarada tivesse ajuda imediata. Referenciado para todas as instituições de solidariedade com capacidade para intervir, foi apoiado, orientado e sobretudo recebeu algum calor humano que o ajudou a levantar-se do chão. Em poucos meses renasceu o homem simples, humilde e bondoso que sempre foi. Estava no bom caminho, a ponto de ser integrado numa comunidade de ajuda para recuperação de outros com problemas idênticos.
Há cerca de duas semanas, depois de um fim de semana em que estive ausente, deparei-me com uma chamada não atendida no meu tm. Devolvi-a, era do sr. Coronel Armando, presidente da
secção da Liga dos Combatentes de Leça a informar-me que o soldado
Corneteiro nº 00260269, Manuel Ferreira dos Santos se tinha ausentado para a sua última e Grande Viagem.
E que não havia ninguém
contactável para proceder ao levantamento
do corpo.
De "Os Lusíadas ( Canto VIII - estrofe 32)" retiro: Ditosa pátria
que tal filho teve.
Acrescento: E vós, Pátria, como o tratastes?!
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