terça-feira, 18 de agosto de 2009

6 - Viagem ao passado

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Imagem: blog.cancaonova.com

Em Agosto, Fátima é o centro do meu pequeno mundo. Habito a poucos quilómetros, o que me permite avaliar a mudança no ritmo de vida da região à medida que se aproxima o dia treze. As estradas principais e secundárias enchem-se de peregrinos de todas as idades e condições. Enfiados em coletes reflectores, como dita a moda e as regras de segurança, movem-se desde o clarear até altas horas como uma serpente gigantesca que vai engordando à medida que a cabeça se aproxima da foz deste rio humano, a Cova da Iria. Velhinhas rijas de negro vestidas, arrastam-se num silêncio doloroso e penitente, sussurrando litanias redentoras. Vozearia e brincadeiras, animam os grupos dos mais jovens que naturalmente não vêm nenhum inconveniente em aliar a devoção ao prazer, fazendo da peregrinação uma aventura festeira. Alguns ostentam um andar novo, de pernas escarcalhadas e foles nos pés, anseiam pelo próximo ponto de apoio ou pela carrinha conduzida pelo familiar onde seguem as ligaduras, os comes e bebes, ás vezes uma enxerga para descansar os ossos durante um par de horas, até o impiedoso calor do sol de Agosto amainar um pouco. Chegados ao mais santificado torrão do solo lusitano, aguardam-nos as enchentes que jorrando por outros caminhos, se espraiam procurando espaço onde ele já não existe. No dia 12 haverão de chegar às centenas, os autocarros apinhados com gente vinda do mundo inteiro. E muitos automóveis com matrículas da França, Suiça, Bélgica, Alemanha, Luxemburgo, Holanda … Tantos são os países onde os filhos da nação foram procurar melhores condições de vida. À noite, na procissão das velas, lá estarão todos. Unidos pela fé, agradecem à Senhora a graça recebida ou imploram a Sua protecção.
Sou adepto da teoria de que mais do que o berço ou o local onde se nasceu, aquele onde passámos a nossa meninice, talha-nos o carácter e baliza-nos o destino até ao último suspiro. O Antoninho nunca deixaria de usar botas, mesmo se tivesse vivido por longos anos em Nova Iorque. Eu nunca deixei de ser rústico militante, apesar de ter absorvido uma certa cultura parisiense. Ao escrever este despretensioso texto que dedico aos amigos, em particular aos crentes, acodem-me à memória quadros da minha própria infância e juventude. Recordo aqui, porque vem a propósito, duas figuras que conheci no Pontão (Chão de Couce), quando ainda era menino: o Aquiles velho e o ti Augusto da Francisca. Dei-me mais com o ti Augusto, pois na qualidade de jovem taberneiro, servi-lhe o pequeno almoço um número incontável de vezes. De Verão, matava o bicho com um branquinho dourado e fresco, obtido pela fermentação de uva fernampires e servido num copo de três. A acompanhar, um figo lâmpado ou pingo de mel, retirado do açafate em cima do balcão. Na sua falta, um bravo de esmolfe engelhado, desertada habitação de uma família de lagartas, servia de lastro. No Inverno, a alimentação tornava-se um pouco mais variada para fazer face aos rigores do tempo e dos muitos anos de vida. Podia ser então um abafadito servido no mesmo copo de três, um eduardinho ou um traçado. Para ensopar, duas passas de caparrota ou umas bolachas maria a um tostão cada. Com este regime, viveu o Ti Augusto da Francisca até se cansar! Com este regime e mais o cigarrito que lhe fazia companhia permanente aos lábios. Tabaco de onça Duque e livro de mortalhas zigzag, que resguardava debaixo de um carapuço de merino preto, fabricado na Castanheira de Pêra. Conheci-os, eram já muito idosos, a rondar os oitenta anos. O Aquiles, entroncado, baixote, pletórico, e reservado. O Augusto, todo branquinho, lacrimoso e falador. Eu, um puto de dez anos, de uma curiosidade insaciável, o melhor ouvinte de ambos.
Eram colegas de profissão, almocreves. Descreveram-me vezes sem conta como tinha sido dura e aventurosa a sua vida de homens jovens e activos. Os relatos sobre assaltos, mulheres e vinho, interessavam-me de uma forma especial.
Começaram como carreiros. Bois pela assoga, aguilhão ao ombro, sofriam as inclemências do tempo, transportando os quinais de pedra calcária das serras da Nechebra ou dos Carrascos, com que se construíam as habitações. As meduras de azeitona, os moios de trigo ou a tina das uvas não conheciam naquele tempo outro meio de transporte que não fosse o carro de bois. Os caminhos, atapetados de matacões ou transformados em lamaçais de barro onde animais e carros se atascavam, retiravam-lhes as forças e horas de sono. Fora isso, tinham a vantagem de viver ao ritmo dos bichos e assim, as horas para comer, beber ou descansar eram sagradas. Mais tarde, com os adequados meios financeiros, adquiriram as viaturas com que se dedicaram ao transporte de longo curso. Para Lisboa, seguiam de carroça puxada à força de mula, bens de que a terra era excedentária, como vinho, azeite, batatas, cereais, carvão etc. Nas charretes, traccionadas por parelhas de cavalos galantemente ajaezados, com antrolhos de cabedal e guizos ao pescoço, viajavam pessoas e, se não estou em erro, as malas do correio. Faziam a ligação entre a região hoje designada por Pinhal Interior Norte e a capital, passando por cidades como Tomar, Torres Novas, Entroncamento e Santarém.
Corria o ano de 1917. Nos anos precedentes, uma série de acontecimentos à escala nacional e internacional, entre os quais cito o assassinato do rei e do príncipe herdeiro, o derrube da monarquia, a instabilidade governativa e sobretudo, a participação de Portugal na 1ª grande guerra, tinham criado o caldinho propício ao exacerbamento dos fervores religiosos. Neste contexto, o rumor de que Nª Sª tinha aparecido a umas crianças, pastores na região de Fátima, espalhou-se como rastilho de pólvora. A ansiedade e as expectativas geradas pela notícia tornaram-se difíceis de conter, tanto mais que corria o “boato” de que aos pastorinhos havia sido entregue uma certa mensagem e a Senhora tinha prometido voltar uma última vez para se despedir.
Aqui, entraram os meus amigos almocreves que de Maio a Outubro de 1917 e nos anos seguintes, não tiveram mãos a medir tal era o número de pessoas a solicitar os seus serviços como transportadores. Foram por isso testemunhas presenciais, directas e suponho eu neutras, de todos os fenómenos relacionados com as aparições, tão amplamente divulgados. E disso me deram conta quando eu era um menino de dez ou onze anos.
Claro está que os meus amigos estão mortos de curiosidade para saberem o que é que os “velhos” me contaram. Mas isso, eu não posso revelar, pois é matéria que constitui o 4º segredo de Fátima!

Juan


3 comentários:

  1. Subalternizando o mote do aparecimento e das Viagens (Peregrinações) a Fátima, acabo por encontrar a deliciosa descrição duma parte da vida rural que eu bem conheci.
    Pareceu-me estar a reviver o tempo que já não volta mais.
    Tantas recordações...

    Santos Oliveira

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  2. Apesar de não ser católica praticante, tenho pena que cada vez mais Fátima se tenha tornado num negócio que envolve milhões de euros! Alguém me explica qual foi a necessidade de construir a nova capela?Não seria preferível investir esse dinheiro num lar para crianças ou idosos?? Ou será que a ideia que eu tenho da igreja ( solidariedade, entreajuda...) não está correcta???

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  3. Cara Gina
    O dinheiro esbanjado naquela Basílica dava para muitos, mas muitos lares de idosos e crianças.
    O que mais me custa é que muito daquele dinheiro pertence a pessoas, que na sua boa fé, fizeram algum sacrifício para o ofertar à Santa de Fátima.
    Carlos Vinhal
    Leça da Palmeira

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