domingo, 4 de outubro de 2009

34 - Estava de gritos!

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Cozinha exótica

Disseram-me que o Marques faleceu. Mal o conhecia, mesmo assim foi com pesar que recebi a notícia. Quem ma deu não soube precisar a data do falecimento, terá ocorrido há cerca de três anos. O senhor Marques era beirão, tinha família na região da Guarda, um filho segundo me contaram, mas desde a partida para S. Tomé na década de cinquenta, quase não tinha contacto com o país nem com a parentela. Exilara-se e pronto. Quando o visitei como seu cliente na cidade de S. Tomé, ia ele nos setenta e tais, ouvi-o repetir uma espécie de cartilha que declamava entre gracejos sem sentido e por certo, mágoas escondidas. Dizia ter chegado àquela antiga colónia portuguesa no dia não sei quantos de Abril de 1955 para aí cumprir serviço militar. Depois, atraído pela beleza da Ilha e pela doçura das catorzinhas, foi ficando … ficando … até se esquecer completamente que era português e um dos raros brancos a quedar-se por aquelas paragens após a independência da colónia.
Também não recordo exactamente em que ano, nem acho que isso seja importante, surgiu o convite para uma viagem a S. Tomé. O Henrique Vilhena, distinto ortopedista, colega e amigo de há muitos anos, encontrava-se em S.Tomé ao abrigo de um programa de cooperação na área da saúde. Como já tinha perto de dois anos de estadia, achou que podia ser o nosso cicerone e daí o convite a alguns amigos, oito à partida de Lisboa, nove com ele, a lotação completa de um jipão no qual percorremos estradas e caminhos daquele belo país.
Ficámos alojados no hotel Baía de onde partíamos todas as manhãs para um pesado programa de visitas, regressando à capital para almoço. É aí que entra o senhor Marques, proprietário e gerente da maior xungaria onde pus os pés até ao dia de hoje.
Num canto de um autêntico armazém de ferro velho, onde obsoletas peças de automóvel, algumas de modelos há muito desaparecidos de circulação, emparelhavam em carunchosas prateleiras com pacotes de arroz e garrafas de óleo alimentar, havia duas mesas corridas cobertas por oleados mais sebosos do que as botas de um cardador, onde servia os clientes do seu prestigiado restaurante.
A ementa não variava muito, andava sempre à volta do chicharro frito com salada de tomate ou um arrozeco malandro a saber a carochas. Mas o que era curioso, é que o peixe daquelas latitudes parecia ter várias cabeças, tão raramente nos caía uma posta no prato. Deliberou-se então passar logo de manhã pelo tasco do Marques e deixar-lhe um adiantamento e a recomendação para que fosse à praça comprar algum do excelente peixe que se cria naquelas águas. Mas a coisa não resultou, a única mudança foi a do nome do nadante e a avaliar pela composição da travessa, íamos de mal a pior. Até que alguém se lembrou de tramar o velho, e num determinado dia, juntamente com o habitual adiantamento recebeu a recomendação expressa para comprar frangos para uma cafriela, pois o pessoal estava saturado de peixe. Chegada a hora do almoço, toda a gente sentada e a salivar com o cheirinho que vinha do barraco nas traseiras que servia de cozinha onde uma avantajada africana exercitava os seus dotes, aparece o Marques todo pesaroso com a informação que nessa manhã não tinha aparecido um único galináceo à venda no mercado da cidade! Mas, “como os senhores já devem estar cansados do peixito, resolvi arranjar um leitãozinho à Bairrada que está de gritos”.
Vem o leitão para a mesa e num abrir e fechar de olhos, o pessoal esfarrapa o petisco sem sequer se interrogar porque é que, ao contrário do peixe, o leitão de S. Tomé … não tinha cabeça! Ao meu prato foi ter uma aba de costelinhas que experimentei sem grande entusiasmo. O sabor não era mau, sabia a alho e pimenta, mas também não era o agradável sabor do leitão a que as minhas papilas se habituaram desde criança, já que cresci numa região onde se assa um leitão com a mesma facilidade com que se faz um frango de churrasco. Mas aquelas costelinhas, que estranho … em vez de espalmaditas como as dos bácoros nacionais, eram arredondadas como um lápis de madeira!?
Bem, quem comeu, comeu, quem não gostou não se coibiu de atazanar os companheiros com a probabilidade de terem comido macaco.
No dia seguinte, mais ou menos à mesma hora e no mesmo local, estando o meu grupo de regresso às cabeças de chicharro, entram dois engravatados cavalheiros tipo caixeiro viajante, que interrogam o Marques acerca das prescrições do cardápio.
- Olhem, se os senhores quiserem, posso-lhes servir peixe frito com arroz e salada como estes senhores estão a comer. O peixinho está bom ou não está, ó dr. Vilhena?
- Não está mal ó Marques. Olha, já que vais fritar mais, aproveita e vê lá se nos trazes um reforço.
O Marques fez-se desentendido em relação à proposta do Vilhena e percebendo que os recém chegados clientes conferenciavam sem chegar a acordo quanto ao chicharro, adianta:
- Mas se os senhores quiserem também lhes posso servir coelho!
- Coelho … como?
- À caçador, responde o finório.
- Seja então, vamos no coelho.
Com o pretexto de que ia transmitir o pedido à cozinheira, o Marques desapareceu por detrás de uma cortina que subtraía aos olhares curiosos dos clientes o que se passava na cozinha e no pátio anexo. Ouviu-se vozear em surdina, ruídos de remexer ou arrastar e de súbito, caim … caim … caim, um choro pungente e abafado, cada vez mais débil até que se extinguiu.
Estávamos de saída quando os nossos companheiros da mesa ao lado, depois de se banquetearem com o pão e azeitonas das entradas se atiravam aos fumegantes pedaços de coelho, que nas palavras do Marques estaria também de gritos!

PS: Dizem as más línguas que o melhor peixe ou carne que entrava no restaurante do Marques, ia direitinho para a barriga de duas catorzinhas de quem ele se ocupava na altura da nossa viagem. Nunca vi as raparigas, mas garantiram-me que viviam no primeiro andar, por cima do estabelecimento.
Contaram-nos mais tarde que o homem, useiro e vezeiro nestas maroscas, esteve condenado a apodrecer na prisão por ter servido béu-béu ao presidente Miguel Trovoada. Salvou-o o Bispo, que o foi buscar ao fim de três dias de calabouço. Até agora, não pude confirmar o relato.
Numa reportagem televisiva, tive oportunidade de ver o senhor Marques de visita à sua terra, integrado numa comitiva que viajou com o patrocínio da Secretaria de Estado das Comunidades.

Juan

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