Stara Zagora
Ganda seca estava eu a apanhar na estação ferroviária de Sikerci,
Istambul, aguardando a hora da partida (10:00 PM) para Sofia, a capital Búlgara.
Em virtude de obras na linha ou por outra razão que desconheço, os passageiros juntamente
com a tripulação do combóio foram transportados de autocarro até uma localidade
situada a 115 Km de Istambul e aí se fez o transbordo. Neste país, a profissão
de ferroviário deve possuir elevado estatuto dado o aprumo dos funcionários e
bom gosto dos uniformes, que inclui fato escuro, camisa azul e gravata a
condizer, com as cores e logotipo da companhia.
Os cento e quinze Km foram
percorridos em pouco mais de hora e meia. Chuviscava mas, no conforto de um bom
autocarro, tivemos uma panorâmica by night de alguns dos mais modernos bairros
desta cidade localizados para os lados do aeroporto. Chegados a uma obscura
estação, os nossos amigos apressaram-se a abrir as portas da carruagem-cama e
cada um tratou de procurar a sua couchette.
A mim coube-me a nº 51, um rés do chão.
Instalámo-nos o mais comodamente possível no que fomos auxiliados pelos
funcionários: Acenderam luzes, armaram beliches onde foi necessário, regularam
a temperatura dentro do compartimento para o nível de conforto, entregaram a
cada passageiro um kit com lençóis
fronha e almofada impecavelmente limpos e forneceram todo o tipo de explicações
que lhes foram solicitadas. Como os passageiros eram em número reduzido, cada
um teve direito a um compartimento só para si, com excepção dos casais,
naturalmente. Só o que não havia era água par oferecer a um determinado
passageiro que se queixava de uma sede de morrer. Como naquela composição não
existia vagão-restaurante onde pudesse comprá-la e, na sua boa fé, um dos
tripulantes tentou ajudar o passageiro solicitando a um colega que transportava
água a bordo para uso pessoal, (ou seria
para negócio?), que dispensasse uma garrafa ao sequioso passageiro. E aí,
estalou a discussão, porque este clamava alto e bom som, que pagar um euro que
além do mais não possuía, por uma garrafa de meio litro de água, era mais do
que especulativo, era uma exorbitância, era um roubo! E assim ficou, para ali, cabisbaixo, sentado no chão, enquanto
o tripulante fechava a porta do seu camarote e abalava corredor fora. Chegou o
meu momento de intervir! Como tinha euros em cascalho e não achei o preço nada exagerado dada a situação, chamei
o cavalheiro, puxei lustro aos seus brios e por duas patacas de euro, ele
aviou-me duas garrafinhas de excelente água, fresca e gaseificada. Até a mim,
que tinha jantado um kebab bem puxadito antes de embarcar, caíu que foi uma
maravilha!
Para trás, ficou um pormenor:
Enquanto discutiam, ouvi o ferroviário perguntar:
- Então você não tem euros
porquê, lá no Brasil não há euros?
Fiquei a saber que o meu amigo de
ocasião era brasuca e foi em
português que reatamos uma conversa iniciada pouco antes em inglês. Era um
jovem mineiro de Belo Horizonte, alto, de porte atlético e bastante moreno,
aparentando possuir algum sangue negro. Uma pequena madeixa branca na cabeleira
de azeviche, dava-lhe um certo ar de sagesse.
De seu nome Thales, como o de Mileto mas que pronunciava “Tális” à brasileira, como
o TGV europeu, Thalys! Deve ter lido umas tretas sobre o filósofo pelo que se chegou
à frente debitando teoria! Entretanto, o comboio denominado Istambul-Sofia
Express, tinha iniciado a marcha. Longe de ser um TGV como supus, era um
comboio agradável, silencioso e rápido.
O cansaço já pesava e o sono …
está quieto ó mau! Eram duas e meia, rebola para um lado, rebola para o outro
e, estremunhado, descubro que o meu compartimento estava quase a pegar fogo,
tal era a temperatura, estando o aquecimento ligado no máximo. Tive de abrir a
janela e vir para o corredor, aguardando que a suite refrescasse um pouco. E eis que surge a primeira paragem
(03.45). Estávamos na fronteira turco-búlgara: No meio da quase total
escuridão, houve que saltar do comboio, atravessar linhas e cancelas e galgar
plataformas até ao barraco onde dois senhores oficiais do SEF lá do sítio
tiveram o desplante de aparecer uma hora depois para dar uma espreitadela às
nossas fúcias e carimbar o castanho. O comboio estremece, prestes a
arrancar, quando dou conta da ausência do meu amigo brasileiro. Através da
janela, apercebo-me da presença de alguém junto de um quiosque situado a poucos
metros do posto policial. Era o Thales, claro, fazendo a aquisição de alguma
necessidade que só podia ser imperiosa, pois corria o risco de ficar em terra.
Esbaforido, salta para o comboio que já começava a mover-se, trazendo na mão …
uma garrafa de Martini! Sobravam-lhe dez liras turcas e tinha que as cambiar
antes de deixar o país. Terá sido este, então, o melhor negócio que lhe
propuseram, ou a sua sede já não era de água?! Questionou-me sobre a murraça.
Dentro dos parcos conhecimentos que possuo sobre o assunto, lá lhe vou dizendo
que a bebida era um vermute muito forte. Tomava-se normalmente acompanhada com
uma rodela de limão e umas pedras de gelo e servia de aperitivo. Que não, a pinga nem devia ser assim tão forte pois
até era adocicada ... Gole após gole, a garrafa já estava em adiantado estado
de esvaziamento quando me dispus a pôr fim a uma longa converseta de cariz filosófico
acerca dos altos valores da civilização grega no tempo do pensador seu xará: A liberdade
individual e o direito de cada um consumir as drogas da sua preferência, a
ética nas relações humanas … abaixo a exploração do homem pelo homem, etç.,
etç.,etç,. Preparava-me para tirar um cochilo quando surgiu a primeira vaga de controladores.
Depois outra e outra, uns civis e outros militares. Parecia que estavam a
nascer dentro comboio! À boa maneira do antigamente
por estas paragens, uns grunhiam ticket,
ticket, outros pediam o passport
que examinavam cuidadosamente à contra-luz, e outros ainda, de lanterna em
punho, revistavam minuciosamente os compartimentos e a nossa bagagem. Tive a
sensação de que estava a ser protagonista num filme da década de sessenta.
Terminada a vaga controleira,
fez-se silêncio, as luzes de corredor diminuíram e o comboio deslizava suave e
velozmente, agora traccionado por uma potente locomotiva a diesel de
nacionalidade búlgara, embora a linha estivesse toda electrificada. Cansado mas
sem conseguir adormecer, corria de vez em quando a cortina para dar uma
espreitadela dos campos verdejantes mas de aspecto abandonado vistos aos
primeiros raios de sol de um dia que se apresentava radioso. Devo ter
adormecido.
Subitamente ouço vozeria e uma
espécie de descargas de ar comprimido dentro da carruagem que obnubiladamente
interpreto como sendo uma “operações limpeza”. Olho para o relógio: São oito e
meia, ponho-me a pé e do corredor, avisto na fachada da estação, em letras bem
gordas as palavras Стара Загора e por baixo: Stara Zagora. Traduzo rapidamente:
"Santa Sofia? Estrela de Sofia?" Estamos mesmo em Sófia decidi eu! Mas,
será que já chegámos? Reparo então que, com excepção do compartimento ao lado
do meu, pertencente ao meu amigo filósofo Tális,
todos os outros estavam desertos. Ainda estava a tentar integrar a coisa quando ouço uma voz do Brásiu:
- Ôi Vitô, chêgámos, não?
- Não sei …
- Como não … todo o mundo já
saíu!
- !?!?!
Mochilita às costas e ala. Lanço
uma última olhadela à nossa carruagem. Parece, sozinha, abandonada, sem máquina
ou outras carruagens atreladas. Caminhámos sobre um emaranhado de carris, saltámos
para o cais e ali mesmo nos despedimos. Ele seguira para norte, sem destino
concreto. Com base no que sabia, deixei-lhe algumas dicas sobre a Rép. Checa,
Alemanha, Hungria … Tinha o regresso ao Brasil programado para Dezembro; não
perguntei mas acho que deve ter deixado penates
por um ano. Mas diz que vai regressar mais cedo, está farto da opressão que constatou nos países já
visitados: Egipto, Yemen, Emiratos, Jordânia …
onde, até foi avisado de que poderia ser preso se fosse caçado a beber álcool em público! Além disso, está
cansado destes controlos todos, pesados e sempre idênticos, por onde tem
passado. No Brasil não é nada assim, exclama em tom de protesto. Para complicar
a sua vida teve um probrêminha com o
cartão de crédito. Sem saber como, sacaram-lhe metade do dinheiro que tinha na
conta. Só azares para este rapaz!
À saída da muito tranquila (?) estação,
avisto um casal de meia idade que está a arrancar de carro, a quem pergunto
para que lado fica o centro da cidade. O simpático senhor faz-me um sinal que
parece um manguito … dá dá dá … é só atravessar o parque e estás no centro, diz
ele.
Centro? Mas qual centro? Esta
cidade parece que não tem centro! Caminho há um quarto de hora numa avenida
bastante movimentada. Uns dizem-me que o centro fica uns trezentos metros, ou
nem isso, mais abaixo. Aí dizem-me que fica um tudo de nada mais arriba …
Começo a ficar intrigado. Cruzo-me com um chaval
assim para o gorducho, na casa dos vintes, shorts, fralda da camisa de fora e
chinelo de enfiar no dedo mas de aspecto geral muito decente. Pergunto-lhe onde
fica o posto de turismo mais próximo. Como resposta obtenho a a pergunta:
- Sabes falar espanhol?
- Claro, pois existe algum português que não
saiba falar espanhol?
E na língua de Cervantes, cujo
conhecimento o jovem vai melhorando todos os anos no trabalho das vindimas, em
Espanha, fomos conversando até ao posto de turismo, que afinal era uma agência
de viagens de algum amigo. Fui atendido por uma senhora simpática. Sofia? Sofia
…? Sófia? Sófia … ? Mas o senhor está a trezentos quilómetros de Sófia, seis
horas de comboio! Ofereceu-me um mapa de Stara Zagora e desejou-me boa estadia.
Senhor, porque me tratais assim?
Eu, que nem bebo, apenas respirei os vapores emanados do hálito do Tális, e
acontece-me uma coisa destas! Porque achais que mereço um tal puxão de orelhas?
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