SÓFIA – BELGRADO, descritivo de uma viagem.
O lugar número 61.
Cheguei cedo à estação; já não é a primeira vez que devido a
atrasos sem justificação fico em terra a ver navios. Fiz as últimas compras
para me livrar das derradeiras Leva que trazia na algibeira: Água,
fruta, dois bongos, um delicioso wrap de frango do KFC com muita salada,
bolachas energéticas e um Sunday no Mac da estação. Ainda sobraram tês
cêntimos para a gorjeta da chavala que me atendeu! Mochila às costas e saco do
farnel na mão, aí vai ele em direcção à plataforma nº faive. Primeira
dificuldade: Há duas plataformas nº faive! No túnel de acesso, um
letreiro tem o nº V e aponta para a esquerda. Outro, mostra o 5 e aponta para a
direita. E agora? Espero que passe alguém. Nada! Volto um pouco atrás ao encontro
duma pachacha seminova (cinquentona) proprietária de um quiosque.
Sentada numa das cadeiras de plástico reservadas aos clientes, fuma a sua cigarrada.
No meio de umas baforadas, uns tantos dá …dá, e outros tantos nié
… nié, descubro que o meu faive
é aquele que se escreve com letra romana. Pelas 19h15 subo à plataforma que se
encontra ainda deserta. Estacionadas, encontram-se apenas duas carruagens, uma normal
e outra de couchettes, esta, de portas trancadas. O seu aspecto é
desolador, há muito que deveriam estar na sucata e olhem que eu sou um daqueles
tipos poupadinhos que gostam de fazer as coisas durarem! Felizmente, o
interior não condiz com o exterior e as condições a bordo não sendo boas, são
aceitáveis. Quero ter a certeza de que esta é a minha carruagem pelo que
interrogo um passante uniformizado não sei de quê. O homem fica indeciso, ainda
aponta para outra linha mas acaba por dizer: Olhe, esta tem aqui um escrito na
porta que diz Belgrado … fiquei semidescansado. Sempre com o olho na mochilita
encostada a um pilar, continuo a fazer rápidas caminhadas para trás e para a
frente a fim de acalmar os nervos e tornar a passagem dos minutos mais
suportável. Sete e um quarto. Vejo aproximar-se um indivíduo; sem nada que o identifique
dirige-se à minha suposta carruagem, abre uma das portas e a partir daí posso
segui-lo no interior abrindo janelas do corredor e compartimentos ou
distribuindo cobertores, almofadas, fronhas e lençóis conforme os lugares
vendidos e a ocupar. Terminada a tarefa, o sujeito que pode ter cinquenta e
poucos anos mas parece ter bem mais, estatura média, seco, rosto ossudo e expressivo
(simpático) e farta cabeleira grisalha penteada para trás, salta para o cais,
puxa do seu Marlboro e ali fica encostado à porta da carruagem tirando uma
passa atrás de outra. De vez em quando pigarreia, vê-se que é um fumador
compulsivo. Na mão tem o que parece ser uma listagem com o nome dos
passageiros. Algo cismado, dirijo-me a ele. Tranquiliza-me com um simpático
grunhido. Que sim senhor, aquele é o meu comboio e eu estou na lista! Ele é o
camareiro, a autoridade máxima a bordo. Controla bilhetes e reservas, procura
que nada falte aos passageiros e ainda zela pela ordem e tranquilidade da
viagem. E posso ocupar o meu lugar? Não diz ele, só daqui a uma hora!
Impassível, mantendo a mesma postura, continua a aspirar fumo de cigarro após
cigarro. Entretanto vão chegando mais passageiros. Entre eles um grupo de
raparigas nos seus trintas bem puxados que não param de tagarelar. Uma delas,
loura, relativamente alta e anafada, com cara de comedora de salsichas, parece
saber tudo e vai esclarecendo as outras. Exprime-se em bom inglês mas julgo
tratar-se de uma cidadã búlgara. Ocupamos os nossos lugares, mais uma vez estou
co sorte. Tenho um camarote (compartimento) só para mim! São oito e
trinta e sete quando o comboio arranca. Dedico os próximos minutos a vestir
a almofada, estender o lençol de baixo (o de cima não vai ser necessário já que
toda a gente dorme vestida), tiro os sapatos e abro a janela. Afinal, isto de
viajar de noite em carruagem cama não é assim tão mau como isso, hei-de
repetir, pensei eu. A relíquia que traccionava a composição, tinha garra. Este
“Expresso Sófia- Belgrado” rapidamente atingiu uma velocidade que calculei
andar pelos 140 Km/hora. Foi por pouco tempo. Um quarto de hora depois
estávamos parados numa obscura estação no meio do nada. Estacionado ao nosso
lado, estava outro comboio cujos passageiros barafustavam entrando e saindo da
composição. Estavam visivelmente irritados e a única coisa que percebi é que
tentavam contactar pelo telemóvel com as respectivas famílias. Cambaleando, um bêbado
dos seus quarenta anos, vermelho que nem um tomate, apeou e mandou uns bitaites
a umas senhoras que logo o encomendaram sem papas na língua. Soube através da
“comedora de salsichas” que cerca das sete da tarde, uma pessoa tinha sido
colhida e morta por um comboio. Fala-se em suicídio disse ela, e nestes casos,
até que cheguem as autoridades sanitárias e policiais o protocolo costuma
demorar três horas. E assim aconteceu de facto. A composição retomou a marcha e
eu voltei para o meu posto de observação, a minha janela. Aqui devo dizer que
só tinha vista para o exterior porque a levava aberta, tal era a sujidade dos
vidros que há séculos já não viam ajax nem a simples esfregona. Com o que
restava da claridade do dia fui observando a paisagem. Quilómetros e
quilómetros de planície, onde belas searas de trigo, algum pronto a segar,
outro ainda bastante atrasado, contrastavam com vastas extensões de terreno
aparentemente exaurido e abandonado. Ao longe, num horizonte distante, a
silhueta negra das montanhas em cujos picos a neve não derretida brilhava com
últimos raios de sol. Escureceu rapidamente. A claridade provinha agora de um
magnífico crescente da lua. Sob os seus raios prateados, as montanhas pareciam
mais escuras e as searas adquiriam um tom pardacento. O comboio avançava
rapidamente através de um corredor de verdura. De um lado e outro da linha,
arbustos de grande altura desenhavam sebes cerradas quase sem descontinuidades.
Nelas pontificavam as madressilvas, damas da noite selvagens, minúsculas rosinhas
de Santa Clara de cor branca e rosa, açucenas, sabugueiros e tílias e mais
rasteiras, manchas arroxeadas de rosmaninho em flor. A claridade projectada a
partir das nossas janelas desenhava nestas sebes, através de uma combinação de
luz e sombras, figuras fantasmagóricas que se deslocavam à velocidade do nosso comboio.
E o perfume que exalavam, Senhor, foi bênção divina para tornar respirável uma
atmosfera saturada de odor a mijum proveniente das casas de banho, onde
parece, ninguém consegue acertar! O cheiro era tão nauseabundo que eu
preferi urinar para uma garrafa e mandá-la janela fora quando tive
oportunidade! Pelas dez da noite saquei do meu farnel e com ele fiz um
autêntico banquete. Preparava-me para cochilar um pouco quando duas “porradas”
na porta me puseram em sentido. Como por geração espontânea, eles costumam
aparecer na carruagem às manadas. Esta primeira vaga é composta por cinco
elementos. Passport kontrol, diz o primeiro. Em silêncio, folheia-o,
procura carimbos, olha para mim, entrega-me o passaporte e segue. Vem o
seguinte e diz: Passport kontrol. Segundo acto em tudo idêntico ao
primeiro. Terceiro acto, um tipo com ar bisontino munido de uma
lanterna, pendura-se pelos braços para espreitar por cima das anteparas,
vasculha os beliches, os espaços por detrás dos encostos das cadeiras e sob os
assentos. Sai sem dizer uma palavra. A seguir aparece o quarto elemento. É
portador de uma chave de fendas e com ela começa a desmanchar o comboio. Começa
por retirar o ventilador do teto (que deixa fora do sítio … ) e ergue-se para
espreitar se há alguma coisa lá por trás. Com ar desconfiado dá uma
espreitadela em redor e sai mudo como entrou. Dirige-se então para aqueles
armários e espaços técnicos só acessíveis aos funcionários dos C.F. Ataca-os
com fúria, possivelmente despeitado por ainda não ter encontrado por onde
pegar. O último dos capangas deve ser o intelectual. Vem à civil e parece ser o
comandante da brigada. Nunca apreciei a autoridade que emana de uma farda,
pistolão à cinta ou metralhadora na mão. Já me foi dada autoridade desse tipo
quando era jovem e não gostei! Mas estes tipos, causam-me asco. Assumem o papel
de rambos tal como os vemos nos ”filmes de acção” dos (não posso dizer o
nome…). Alguns, de cabeça rapada e pescoços taurinos parecem culturistas. Sem
excepção, desconhecem palavras ou frases simples como: Boa noite, se faz favor,
desculpe, muito obrigado … Dizia-me o instinto e a experiência, que já vai sendo alguma,
que outra vaga de controleiros se seguiria. Estendi-me sobre o beliche e
aguardei pela pancada. Entre silêncios prolongados e explosões de
risadas histéricas, as companheiras do compartimento ao lado do meu comentavam
estas manobras. Irritado por não conseguir dormir e sempre à espera de nova
incursão, limitei-me a cerrar os olhos enquanto remoía pensamentos maus. Não
tardou! Como e onde é que eles subiram a bordo se o comboio não fez entretanto
qualquer stop? Nesta segunda vaga de assalto de origem Sérvia, em tudo idêntica
à primeira, as únicas diferenças que encontrei foram as seguintes: O tipo que, sem
qualquer acanhamento, escancarou a porta do meu camarote e acendeu a
luz, limitou-se a perguntar. Portugália? Yes, respondi. Nada mais disse
e seguiu corredor fora. A segunda diferença é que esta turma integrava uma
mulher. Trinta anos, rabo de cavalo, coldre descaído à cow-boy, ar de machona
(atenção que quem manda lá em sou eu … !), foi ela quem, depois de examinar o
meu passaporte lhe espetou uma carimbadela. Havia também dois polícias já
idosos e muito barriganas. Um deles, olhando para a minha mochila, perguntou-me
timidamente … normal? Yes, respondi mais uma vez. O velhote ficou
meio indeciso pelo que prontamente arreei a bagagem que seguia no
beliche superior (por cima do meu), corri os fechos e disse: Please! Fez
o gesto de OK com a mão e seguiu. Mas a saga ainda não tinha terminado! O rigor
máximo estava reservado para a fronteira búlgaro-sérvia. Passageiros trancados
na carruagem, ninguém sai, ninguém entra. No exterior, duas brigadas de
polícia, uma do lado esquerdo outra do lado direito do comboio, munidas de
espelhos e potentes projectores, passam a pente fino cada eixo, cada longarina,
cada mola, cada recanto do chassis. Pesquizam exaustivamente as redondezas
procurando alguém escondido que tencione apanhar o comboio em andamento. Mesmo depois
de voltarmos a arrancar, matêm-se ao longo da linha os projectores apontados ao comboio. Os
seus operadores só os deligam quando é atingida determinada velocidade, incompatível com qualquer tentativa de abordagem clandestina. O que acabo de descrever não constitui qualquer excepção ao modus faciendi habitual. É assim sempre, todos os dias! Pois eu supunha que estes procedimentos tinham
cessado na década de oitenta. No entanto, esta experiência fez-me reviver
tempos de antes da queda do Muro em que qualquer visita ao leste era
considerada uma perigosa aventura! Agora uma pergunta muito simples: Aqueles
que advogam o abandono do euro e consequente saída da União Europeia, estão
dispostos a voltar a isto? Mesmo que me digam que com a crise (ou sem ela),
nunca terão hipóteses de viajar eu pergunto: E não pensam nos vossos filhos e
netos? E já agora, achei a Bulgária um país parecidíssimo, em tudo, com o nosso
Portugal dos anos 60 e 70. Vai ser necessário muito dinheiro e terão de passar
muitos anos para que este país atinja o desenvolvimento que nós já alcançámos.
Pensem nisto e tende cautela com certos bafos. Ou ainda pode aparecer
alguém que vos faça a vontade! Belgrado: Nada a dizer. Idêntica a qualquer dos
outros Bês que conheço: Bruxelas, Berlim, Barcelona … Estes já lá podiam estar!
Povo muito consciente da sua dignidade e cultura. Por exemplo, dos quarenta
anos para baixo são poucos os que não dominam um excelente inglês. E depois, a
maneira como as pessoas se vestem, como se comportam quando estão com os
filhos, como andam na rua, o tipo de produtos que consome, como recebem os
visitantes etç. mostram que se trata de gente fina. E gente fina … é outra
coisa! Aqui já é Europa e estes não podiam, já deviam lá estar. Disse.
Obs: Enquanto estive na Bulgária, talvez por ter faltado a
algum controlo devido à peripécia que descrevi num post anterior, estive sempre
"debaixo de olho". O meu bilhete do inter-rail foi-me confiscado logo que entrei
no comboio em Sofia e apesar da minha insistência só me foi entregue após ter desembarcado em Belgrado. A informação deve ter sido passada à polícia sérvia
que sabia exactamente que naquele compartimento, no lugar 61, viajava um português. Portugália?
Estou tranquilo. Quem não deve não teme! Disse.
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