Cheguei
à estação de Keleti ainda não eram seis da tarde. O meu comboio só partiria às
20.05h pelo que tinha tempo mais do que suficiente para tratar das
formalidades. Depois de tirar uma senha para o guichet informações no
sector ”international tickets”, aguardei pacientemente a minha vez para ser
informado de que deveria tirar outra senha para, num guichet ao lado, comprar a
reserva de lugar! Meia hora de seca e …
- Olhe, o guichet já encerrou!
-
Então e agora o que é que eu faço? Eu preciso de apanhar este comboio!
Com um ar compungido, diz-me o chavaleco:
- Experimente
falar com o “conductor” …
Saí
a bufar. O comboio estava parado na linha 7. As carruagens da cauda tinham
letreiros a indicar Berlim, Hamburgo, Praga …
Eram
todas carruagens-cama. A que me interessava era a primeira, logo a seguir à
máquina. Seguia para Varsóvia e em princípio deveriam existir lugares vagos.
Deveriam, se a carruagem não tivesse sido literalmente assaltada por um grupo
de chineses. O condutor, um homem ainda novo, aí pelos quarenta e cinco,
fardado de vermelho dos pés à cabeça como todos os seus colegas, não tinha mãos
a medir no auxílio ao embarque da bagagem dos chinocas. Incrível é a quantidade
e o tamanho das malas e malotes que estes tipos trazem atrás de si, como se desejassem
levar a Europa com eles. Fiquei para o fim e só então me dirigi a ele. Ouviu-me
com atenção; não foi preciso mais do que um aceno negativo da sua cabeça para
eu perceber que estava fdo. Estendeu-me a lista de passageiros …
- Como
pode ver, já tenho 3 supranumerários, disse ele a fazer render o peixe. Deu
mais uma volta e nada de sim ou sopas definitivo. Procurando pôr fim ao impasse,
inquiri:
-
Então … nada feito!?
- Moment,
disse ele.
Pouco
depois fazia-me sinal para entrar. Postado à porta e antes que eu pusesse o pé
no primeiro degrau, estendeu a mão e …
-
São trinta euros!
Achei a gorjeta puxada e pensei ... já foste! Mas eu já estava
por tudo e o que não queria era mais um dia de seca em Budapest Entreguei-lhe
os trinta euros e querendo ter a certeza de que não ia ficar algures pelo
caminho, perguntei:
- Vou mesmo para Varsóvia?
- Warsawa?
Nein, nein … esta carruagem vai para Cracóvia!!!
Oh,
fds!
- Venha
daí, disse ele devolvendo-me prontamente os trinta paus. Vamos falar com
o meu colega.
Não
percebi o que conversaram mas suponho que o tema andou â volta da importância
que eu estava disposto a pagar. O colega, um homem gordo com ar de quem está sempre
pronto a ganhar algum por fora, começou por não facilitar nada as coisas. Ignorou-me pura e simplesmente enquanto procedia â contagem e acomodação dos passageiros regulares. A
cada vez que eu tentava perceber qual era a minha situação, respondia apenas:
- Moment,
moment …
Estávamos
a menos de cinco minutos do comboio arrancar. Desiludido, sem a menor réstia de
esperança, vejo o gordo fazer-me sinal para subir. Porém, tal como sucedera anteriormente,
o nosso amigo travou-me o passo com a repetição das palavra euros …. euros, e
mais qualquer coisa que não entendi. Abri a carteira, saquei de uma nota de
vinte e entreguei-lha. Abanou a cabeça como a dizer que era pouco. Fiz, o
choradinho, que estava curto de finanças etç. e tal. Nada feito. Não
entendo o que tu queres pá --- don’t
understand, nicht verstehe, non capisci …
Aí a
cena tornou-surreal; o homem manda-me abrir a carteira, espreita lá para dentro e
ele próprio arrebata a notinha que faltava. É preciso ter lata!
Do
tipo que arrecadou a massa, nunca mais vi nem rasto. O comboio já estava em
andamento, eu aguardava que me indicassem o lugar ou me mandassem sentar no
chão. Acercou-se de mim outro conductor, mais velho, cuja presença eu
tinha notado na sombra das negociações. Com um sorriso simpático diz-me:
-
Então o senhor acha que pagou muito?
-
!?!?
-Já
viu …? Vai viajar em primeira classe … primeira classe, num compartimento só
para duas pessoas. Diga-me, quer um café, um chá ou prefere uma água?
Eu
preferia era ocupar o meu lugar, para o qual fui conduzido sem demora. De facto
tive a sensação de que se tratava de um quarto de hotel. A largura das duas únicas
camas, a qualidade das roupas, o frigo-bar atestado com comida e bebida. Havia sabonetes, shampoo, toalhas. Até os sanitários impecavelmente limpos não tinham
nada a ver com a nojice habitual dos comboios.
O meu companheiro de camarote,
embora o tenha negado, parece ter uma relação especial com o camareiro.
Acho que existe entre eles uma certa cumplicidade. Posso estar enganado, mas …
De
seu nome Shakhir, é um azeri de Baku. Tem trinta e um anos, estatura média,
cabelo curto mas não rapado, cara redonda com olhos grandes expressivos e o ar
de menino que não parte um prato. Fala sete línguas regionais mas de inglês não
conhece mais do que uma vintena de palavras. Com elas e uma capacidade mímica
extraordinária conseguimos conversar durante horas. É um tipo extremamente
divertido que poderia ter sucesso no show-business. Declara-se operacional do
import/export e realmente, até bem tarde, o seu telefone não se calou. Parecia dar
ordens, transmitir indicações. Viaja com roupa para dormir e chinelos de quarto.
Fala de política e de negócios e parece ter boas relações com personalidades
importantes dos governos das repúblicas do Cáucaso. Escangalha-se a rir quando
recorda a treta do episódio de gripe H1N1; as pessoas de máscara no nariz e
boca e os responsáveis … Shakhir … Shakhir, precisamos de medicamentos,
desesperadamente. E o bom do Shakhir a importar da China toneladas de tablets
que as pessoas comiam aos 4 e cinco por dia convencidas de que assim estavam protegidas contra o vírus.
Shakhir
é também um bom muçulmano. Consigo traz um pequeno tapete que estende no chão sobre
o qual reza as suas orações, salmodiando versículos do Corão em voz alta como
se estivesse a cantar. A oração dura cerca de meia hora antes de deitar e repete-se pouco depois das
cinco da manhã.
Às 06.30 h é o nosso camareiro que bate à porta. Numa bandeja traz um excelente café fumegante para acompanhar os croissants que se encontram no frigo.
Com
as orações do Shakhir, os estremeções, encontrões e safanões a que os
passageiros ficam sujeitos devido às manobras de atrelagem e desatrelagem das
carruagens, dormir foi impossível. Chegámos à estação central de Varsóvia
exactamente às sete horas e dezassete minutos conforme previa o horário.
Surpresa das surpresas, o camareiro entrega-me juntamente com o meu bilhete, um recibo referente à utilização da couchette no montante de ... 23.00 €! Agradeço e ainda o gratifico com as moedas que me sobraram de Budapest. Eu e Shakhir despedimo-nos no hall principal da estação quando uma chuva intensa caía sobre
a cidade. Num posto de turismo próximo fiz a reserva do hotel para onde me dirigi de táxi. Estou alojado no
LOGOS, localizado a sete minutos a pé do centro. Fica num edifício recente com
12 pisos que, pelo que entendi, pertence a um operador turístico. A tarde de hoje foi para recuperar o sono perdido e à noite estou a fazer-vos este
relato.
Magnífico texto,um bom argumento para uma curta metragem.
ResponderEliminarLuís