quinta-feira, 23 de maio de 2013

114 - De Belgrado a Budapest.


Amigos;

já passaram três dias desde que cheguei a Budapest. Esta cidade não me deixa um minuto livre para poder fazer o meu relato escrito! No entanto, eu gostaria de dizer qualquer coisa acerca do último troço da minha viagem. Bem, não é que haja algo de relevante para contar, aqui reside o simples interesse em esclarecer outros que possam buscar no Blog “inspiração” para as suas próprias viagens.
Quando se fazem viagens longas (internacionais) de comboio, torna-se necessário tomar algumas precauções, a primeira das quais é chegar a horas à estação. Uma antecedência de meia hora pode parecer exagerada mas não é demais. Convém, se possível de véspera, fazer o reconhecimento do local. É particularmente importante saber qual a linha de onde parte o nosso comboio e como se chega lá. Em algumas estações as plataformas estão distribuídas por vários pisos aos quais se chega através de elevadores, escadas rolantes ou simples escadaria. E ainda há a questão dos túneis de acesso nem sempre fáceis de selecionar dado que, as indicações que ostentam são destinadas a um público cuja língua não entendemos. Pelo menos aqui, por estas paragens. Em Belgrado fui falar com a senhora do guichet das viagens internacionais que me forneceu todos os detalhes acerca da minha deslocação: Partida no dia seguinte às 06h45, chegada a Budapest às 14h30, directo, sem necessidade de reserva, disse ela. Mas não será melhor  fazer a reserva do lugar, insisti? Para quê? Como vai ver, o comboio partirá com paletes de lugares vazios, respondeu ela. Nestes casos de partida matutina manda a prudência que na véspera à noite se regularize a conta do hotel guardando para o nosso táxi do dia seguinte, a importância que nos é indicada pelo recepcionista como sendo o custo da nossa corrida até ao aeroporto, estação de C.F. ou terminal rodoviário. Eles sabem exactamente qual é esse valor porque trabalham com taxistas “avençados”. O que sobrar, se sobrar algum, é para gastar numa bela jantarada por exemplo, porque esse dinheiro não vai ter curso no país para o qual nos deslocamos. Muito importante também é activar o “serviço de acordar”! Pois apesar de ter tomado todas estas precauções (até deixei a mochila arrumada …), não consegui dormir a ponta de um c.! Pus-me a pé com uma telha desgraçada que normalmente passa quando tenho oportunidade de bater uma boa sorna a seguir ao almoço.
Desta feita, viajo num comboio “europeu”. No interior ainda perdura o cheiro dos materiais sintéticos com que foi construído. É muito confortável, com bons espaços entre os assentos e impressiona pelo silêncio reinante na carruagem. Chego a ter a sensação de que está parado! O único ruído que chega ao meu ouvido em surdina, é uma conversa entre tês passageiros de língua inglesa, australianos pela pronúncia, que se vangloriam da universalidade do seu idioma.
O trajecto continua a fazer-se através de um “corredor” de verdura. Toda esta região, incluindo o território húngaro que atravessámos até chegar a Budapest, constitui uma imensa planura, não se observando nem mesmo ao longe, quaisquer montanhas, quando muito, suaves colinas. Em alguns troços do nosso percurso e dado que estamos na época do degelo, a água que o rio extravasa, acerca-se da linha. Vêm-se então extensos pantanais (semelhantes ao nosso sapal), onde medram juncos e canaviais e nas partes mais altas, florestas de choupos, freixos e salgueiros. Noutras zonas são as flores brancas de enormes tufos de margaças que nos deixam a impressão de que um gigante andou por ali a borrifar a Natureza com iogurte!
A paisagem rural da Sérvia é muito bonita. Não se vê um palmo de terra desaproveitado, as parcelas aparentam ter dimensões gigantescas e a pujança das culturas sobretudo cereais, é notável. Tanto para o lado esquerdo da linha como para o lado direito, avistamos faixas de terreno com quilómetros de extensão, reflectindo todas as tonalidades do verde, desde o pálido dos milheiritos que ainda mal despontaram até ao carregado dos viçosos trigais. A contrastar, o louro quase branco das ondulantes searas maduras ou o castanho escuro, perto do preto, da terra lavrada de fresco onde já germina aquela que será a segunda colheita do ano. Faisões selvagens, galos do mato e outras aves que não identifico, aproveitam para "roubar" uns grãos e encherem o papo. De uma maneira geral as searas estão perfeitamente limpas, não se observa ponta de joio. Mas também vi algumas em que as papoulas eram tantas que mais pareciam um extenso tapete vermelho estendido à nossa passagem! Os sérvios  cultivam ainda e em grande escala batata, feijão e ervilha. No campo, os aglomerados populacionais são pequenos, têm um ar muito próspero e não há casa que não tenha o seu pequeno quintal, alguns cercados por latadas, tratados com amor como se fossem os seus jardins. Ali cultivam tudo o que necessitam para o dia a dia incluindo as frutas. Tenho a impressão que o ambiente campesino da França foi para aqui transplantado ou ao contrário. A diferença que encontro consiste no facto de estas pequenas comunidades serem tão dispersas que eu não sei como é que eles se conseguem encontrar para as complicadas manobras do acasalamento e reprodução, incluindo os treinos!
Por volta das 11h00 já estamos perto da fronteira Sérvio-Húngara. Mais um stop. São incontáveis as paragens efectuadas até este momento, parece que estou a viajar no regional de Coimbra ao Entroncamento. Aqui sobem três galhardos polícias sérvios que em meia hora e de uma forma mais cortês, sem grandes formalidades, despacham o controlo de passaportes. Não teve comparação com experiências anteriores. Entrou também uma balzaquiana húngara acompanhada pelo seu “bezerrito” de uns dez ou onze anos. Resolveu “marrar “ comigo. Exibe um papelito onde se diz que o meu lugar lhe pertence! Há vários lugares disponíveis à volta mas ela quer aquele … e prontos! Faço-me desentendido mas mastronça não se cala. A cadência da conversa é tão rápida que dá a impressão que a santinha está a praticar um trava-línguas. Em Inglês, tentei explicar-lhe que naquele comboio não viajava ninguém com lugares reservados, como de resto estava bem explícito, em várias línguas, nas costas dos assentos. Não quis saber, fez queixa ao revisor. Este limitou a retirar a mala que uma chinoca tinha deixado a ocupar um lugar e a dama instalou-se no sofá … por detrás do meu. E zum!
Já rolamos na Hungria. Nova paragem, novo controlo policial. Desta vez são três gendarmes muito jovens (miúdos!) que trazem a tiracolo uma maquineta com a qual leem as informações contidas em cache nos passaportes. Um quarto elemento percorre os corredores com um detector de metais e um espelho de cabo comprido, sendo o quinto portador de um escadote de alumínio. Ganda circo!
Aqui mudou tudo, até o tempo. O dia continua luminoso mas vêm-se no céu muitos cúmulo-nimbos que ainda hoje haverão de descarregar. Até parece que estão a receber dinheiro da saca para deixarem de cultivar. São milhares de hectares completamente ao abandono, tomados em grande parte pela praga das acácias. Nos pousios pasta algum gado de leite – que não vi na Sérvia! – e raras ovelhadas.  Mais para norte vi algumas boas culturas, também cerealíferas, a par de outras amarelentas, definhadas. Pelo contrário, em terrenos que me pareceram arenosos e pobres, vi alguns belos vinhedos novos em palmeta, muitos ainda na fase de bacelo, promessas de um futuro risonho e carregado de alegrias, informação que, com o devido respeito e ponderação deixo ao cuidado do meu amigo Pinto dos Santos!
São quase três da tarde. Pela extensão do entrecruzamento de linhas, devemos estar a chegar. Sobre algumas delas, mais afastadas, estacionam composições há muito fora de uso, totalmente grafittadas, à espera de uma morte que, a bem do ambiente, deveria ser bem mais rápida. Nada comparável ao que vi nos arredores de Belgrado onde agonizam milhares de carruagens perfazendo muitos quilómetros de extenção. Com ferrugem a escorrer como lepra pela chaparia, corroendo-a e abrindo buracos através dos quais se observam no seu interior prados e florestas em pleno desenvolvimento. Dispersas na paisagem Sérvia vi também instalações de grande gabarito, muitas atravessadas por carris sobre os quais ainda repousam vagões abandonados. Eram os grandes armazéns, silos e parques de máquinas de tempos que podem ter sido áureos. Hoje, com vidros partidos, telhados arrancados, esqueletos à vista, jazem tristemente como testemunho de uma forma de organização colectiva da economia.

2 comentários:

  1. Amigo Vitor
    Confesso que os teus escritos, às vezes, me fazem lembrar a prosa queiroziana(...), tal é a minúcia descritiva!
    Um abraço.

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    1. .Caríssimo Pinto, obrigado pelo teu comentário. Tens razão, eu tenho tendência a perder-me nos pormenores! Vou tentar ser mais conciso. Mas sabes, às vezes o cansaço já é tanto que o corpo exige um pouco de repouso. É nessas alturas que aproveito para pôr a escrita em dia e o acto de escrevinhar ajuda a passar o tempo. Daí o fazer render o peixe … A única preocupação que tenho é ser rigoroso e verdadeiro nos meus “escritos” como lhe chamas, e bem. De outra forma seria enfiar o barrete a mim próprio, aos amigos que gostam de me ler e aos meus. Aceita um abração do,
      VJ

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