quinta-feira, 3 de setembro de 2009

15 - A minha primeira Viagem - I

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Arqº pessoal: O meu passaporte "novo" já me permitiu dar umas voltinhas pela Europa.

Arqº pessoal: Face do doc. que prorrogava a autorização de estadia.
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Dans ma valise en carton
J’ai mis ma vie en chanson
Un bout de châle tout fleuri
Un bout de ciel et d’accent du pays
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Linda de Suza - La valise en carton

Acabava de completar 18 anos. Terminado o liceu, tinha decidido com o acordo dos pais fazer um interregno visando angariar fundos para prosseguimento dos estudos. Muito cedo, tinha ingressado no mundo do trabalho e das responsabilidades, coisa bastante comum na minha geração. Aos cinco ou seis anos já ajudava a tratar dos gados e fazia pequenos trabalhos no campo. O trabalho do menino é pouco, mas quem o desperdiça é louco, ouvia dizer à minha mãe. Após concluir a quarta classe, sentia-me “um homem” e era tratado como tal, não só pelo núcleo familiar restrito, mas por toda a vizinhança. A dureza do trabalho foi aumentando com a idade até atingir os limites do insuportável. Os meus pais geriam uma pequena tasca á moda antiga, onde se vendiam também mercearias, tractol para os motores de rega e camisas de nailo (nylon). Possuíam ainda uma exploração leiteira que causou grande sensação e curiosidade em toda a região, dado que por ali nunca se tinham visto vacas malhadas a preto e branco (turinas). Naquele tempo, a polivalência já não era novidade nenhuma para mim. Empregado de mesa, cozinheiro, merceeiro, trabalhador rural e vendedor ambulante, eram actividades a que me dedicava com toda a naturalidade e em simultâneo. Nas poucas horas destinadas ao repouso, afincava-me no mister de estudante aplicado. Por isso, emigrar e ir à procura de um trabalho melhor remunerado que aquele que eu tinha, não era apenas uma aventura, era um desígnio bem calculado.
O destino era França. O meu pai já lá tinha feito um curto estágio no ano anterior e trouxera boas referências. Os franceses eram gente boa, a simpatia dos patrões era inexcedível e ia ao ponto de cumprimentar os seus trabalhadores com um aperto de mão, e acima de tudo ganhava-se bem. No batimã (bâtiment = construção), a maçonaria (maçonnerie = pedreiros), é que estava a dar. Um obrieiro (ouvrier = trabalhador) era embochado (embaucher = admitir, contratar) ao preço três francos e meio / hora, - cerca de oito cêntimos de euro! -, mas podia fazer uma boa folha de peia (feuille de paye = folha de pagamento, salário), se o toliê (taulier = patrão) desse horas extraordinárias ou trabalho à tacha (à la tâche = de empreitada). Um excelente ordenado rondava as cento e vinte mil balas (balles = fracos velhos = cêntimos de franco), cerca de seis contos mensais, dez vezes o salário de um trabalhador em Portugal! Isto para os maçons (maçon = pedreiro), porque os manobras (manoeuvre = servente) não passavam das sessenta a setenta mil balas por mês.
Era com isto que eu sonhava acordado numa manhã gélida de Janeiro de 1966, quando recebi ordens para ir à Junta da Emigração situada na rua da Junqueira em Lisboa, levantar o meu passaporte, “válido para França via Espanha, exclusivamente”. Ainda sinto uma certa emoção ao recordar aquele caderninho de capa azul com a minha fotografia no interior. Tenha-se em conta que, viajar com passaporte, não era para todos. Eram necessários conhecimentos e havia que distribuir alvíssaras em presuntos e garrafões de azeite, por certas pessoas bem colocadas. Já dizia o meu pai: Quem não tem padrinhos, morre mouro! E quem não tinha padrinhos, recorria ao passaporte de lapin (passaporte de coelho = atravessar a fronteira clandestinamente ou a salto).
Chegou o dia, finalmente. Não recordo a data com precisão e para confirmá-la já não tenho o meu velho passaporte que entreguei no Consulado Geral em Paris, rua Édouard Fournier, 16ème arrondissement (16º Bairro), em troca de outro novo. Sei que foi no princípio de Fevereiro, dois ou três dias após o falecimento da minha avó paterna. Comigo viajava o meu pai e um irmão dele, o tio António que, embora mais novo, era já um veterano da França. Aos seus bons ofícios devíamos as contratas (contratos de trabalho) que nos permitiam emigrar legalmente. A azáfama dos preparativos, ao estilo dos filmes italianos de então, seria hilariante nos dias de hoje mas levada muito a sério naquela época. Na bagagem seguiam poucas "malas de cartão", mas muitos quilos de chouriço, nacos de presunto e toucinho, não sei quantos salamins de feijão, alqueires de azeite e muita aguardente bagaceira para combater o frio, já que as roupas eram poucas e de fraca qualidade. Tudo isto envolvia uma certa dose de astúcia para que as autoridades não procedessem ao arresto das mercadorias em Andaia (Hendaye). Por exemplo, as vasilhas de dez litros onde era transportada a aguardente à candonga, eram exactamente iguais àquelas onde seguia o azeite, produto de circulação livre e legal. Para que os funcionários da alfândega não dessem com o gato, o latoeiro e artífice da marosca, soldava em comunicação directa com o bujon (bouchon = tampa, rolha), um tubo que ia até ao fundo, tubo esse que era cheio com azeite e rolhado. Depois, virava-se a vasilha ao contrário e enchia-se com aguardente e só então o fundo era selado. Se os fiscais metiam o nariz e mandavam retirar o bujon … dava-se o milagre, saía azeitinho, do bom! Quanto às garrafas de vinho do Porto e enchidos, em caso de fiscalização, uma parte era consensualmente apreendida a favor dos guardas e respectivas famílias para que a parte restante pudesse seguir até Paris.
O largo da estação em Pombal ia ficando composto com dezenas de homens que, de trouxa aviada, arribavam nas camionetas da carreira, taxis ou até em carroças puxadas por muar. Vinham cedo para não perderem o Sud Express que chegava por volta das onze da manhã. Alguns faziam-se acompanhar por familiares que queriam despedir-se e ao mesmo tempo davam um cu de mão (coup de main = ajuda), fazendo passar a traquitana através da janela, directamente do cais de embarque para o compartimento do comboio onde o franciú d’Alcochete tinha lugar reservado. Os atrasos eram habituais e a espera tornava-se exasperante. O frio obrigava a bater palmas e, só a custo, um estranho sapateado permitia manter os pés mornos. Para os mais inconformados com a meteorologia ou de coração mole, encontrava-se ali à mão a adega Valadas com os antídotos apropriados. Um tintol ou branquinho, tirados directamente do casco e a fazer camarinhas no copo, mais um jaquinzinho frito ou uma bela patanisca de bacalhau a servir de lastro, e ficava um homem como o aço!
Com uma infernal chiadeira de freios precedida de um silvo que a mim me pareceu mais um uivo sinistro, o comboio lá se imobilizou na linha. Rapidamente colocámos as bagagens nas prateleiras por cima dos assentos e instalámo-nos. A jeito, entre pernas, ficou apenas o cesto do farnel, a botelha (bouteille = garrafa) da água e uma bota (recipiente em couro, muito usado em Espanha para transportar vinho que se esguicha directamente para a boca).
Uma espécie de coice seguido de um solavanco da carruagem, e nem foi necessário ouvir o apito do bandeirinha para eu perceber que tinha começado a minha primeira grande viagem pela Europa, que iria durar cerca de três anos.
O tempo escoava-se lentamente, os ponteiros do relógio pareciam ter adormecido. De vez em quando sacudia o pulso e encostava o meu longines ao ouvido para lhe sentir o coração a bater. Pampilhosa, Celorico, Guarda. A contemplação da paisagem rude e austera, não aliviava o peso do tédio que aparentemente se apoderara da composição. A vozearia e risadas das primeiras horas, dera lugar a um silêncio modorrento entrecortado de sussurros.
Três da tarde, os meus companheiros de viagem, semi-anestesiados pelo santo líquor da bota, descalços e com os pés chulezentos apoiados no banco da frente, dormem que nem justos. Desperto-os com uns abanões, pois estamos a aproximar-nos de Vilar Formoso, terra de contrabandistas, despachantes, pides e guardas fiscais. Mal o comboio estaca, uma chusma deles toma de assalto as carruagens, atentos a qualquer comprometedora minudência que só faros bem treinados conseguem detectar no rosto ansioso de quem não está bem com a lei. Verificados os passaportes e os cantos esconsos onde algum clandestino pudesse ter-se aninhado, o comboio recebe autorização para prosseguir a marcha. Aproveitamos então para comer uma bucha e durante o resto da tarde, de nariz encostado ao vidro da janela observo a paisagem espanhola bem diferente da nossa, que agora e por comparação já me parece mais bonita. Por aqui é tudo muito plano (meseta ibérica), vêm-se apenas chaparros, gado de pelagem negra e algum verde à espera do verão que o há-de converter em restolho calcinado pelo sol. Vejo também, ao longe, pequenos e tristes lugarejos de aspecto lúgubre, que parecem ter sido construídos com materiais retirados de alguma escombreira. São habitações de aldeãos, na sua maioria trabalhadores de grandes fincas (herdades), transformadas em coutos de caça.
O primeiro dia de viagem chegava ao fim com um magnífico pôr do sol, lá para os lados da praia do Osso da Baleia. Em Fevereiro, a noite cai rapidamente e à chegada a Miranda del Ebro já não se via um palmo à frente do nariz. A estação estava às escuras e os poucos sinais de vida na proximidade, chegavam-nos através dos reflexos bruxuleantes das lanternas dos ferroviários que procediam a manobras e verificações de rotina. E os sempre omnipresentes trancos e solavancos do ferro contra ferro. Acomodei-me para passar pelas brasas, na esperança de que ao acordar, o Mundo se apresentasse mais risonho. Mas não, o dia amanheceu triste em Irum, na fronteira franco-espanhola. Uma borranha fria, tipo molha tolos a toldava-me a visão e o humor. Feita a mudança de comboio devido à diferença de bitolas, entrámos em território francês (Hendaye). Não tenho explicação para o facto, mas só ali tive a sensação de que estava realmente no “estrangeiro”.
Entre bocejos, e uns pedaços de broa com azeitonas, fui lendo as tabuletas; Bordeaux, Angoulême, Poitiers, Tours, Orléans …Eram seis da tarde quando chegámos a Paris-Austerlitz. Achei estranho, pois ouvia-se falar português por todo o lado, tantos eram os que chegavam quantos os que os aguardavam. Falsos taxistas portugueses e outros transportadores igualmente candongueiros, esperavam a chegada do comboio. Um portuga velhaco, sacou-nos uma fortuna para nos conduzir com armas e bagagens até uma pequena localidade na banlieu parisienne (arredores de Paris), chamada Villecresnes. Aí, à beira de um caminhito de terra batida e cu tapado chamado Chemim de Jolivettes, havia uma barraquinha tipo bidonville, construída com tábuas surripiadas das obras e coberta a papel goudronné (papel embebido em alcatrão), habitada por quatro chavais da minha idade. Mais modesta, não podia ser. A cama, uma tarimba de madeira com cerca de um metro de altura, suportava um colchão recuperado da poubelle (lixo, vazadouro) suficientemente largo para acomodar cinco homens deitados a par, todos machos! Os lençóis, dois cobertores de cor indefinida, já estavam ao serviço havia várias épocas encontrando-se praticamente impermeabilizados, capazes de se manterem de pé. Entre o lençol de cima e as duas mantas retalheiras que nos cobriam, várias camadas de papel obtido a partir de sacos de cimento devidamente espoados. E por cima de nós, o habitual chinfrim das ratazanas que num interminável ballet procuravam, também elas, algum calor para poderem cochilar um pouco. Lá fora só estavam dezassete graus abaixo de zero! Eram seres inofensivos e uma vez ultrapassada a repulsa inicial, conseguíamos conviver pacificamente, com a condição de ao alcance dos seus dentes não ficarem botas de cabedal ou baguetes de pão. Para evitar que lhes servissem de repasto durante a noite, a estratégia consistia em deixar o calçado e as sobras de comida suspensas do tecto, através de cordéis.
Quanto ao pai e tio, associados na liga dos okupas, tomaram conta de uma roulotte que se encontrava nas imediações e aí estabeleceram residência durante uns meses.
Mesmo a terminar quero deixar esta reflexão que, além der ser estritamente pessoal, não pretende servir de lição para ninguém.
1º À procura da felicidade, distraímo-nos correndo atrás de canas de foguete. E no entanto, a felicidade pode estar aí ao lado e é grátis. Apesar das condições deploráveis acima descritas, aquele foi um dos lugares da Terra onde fui mais intensamente feliz.
2º No nosso quotidiano de cidadãos de um país desenvolvido, a amizade, a fraternidade e a solidariedade, são bonitas palavras de circunstância que se usam em momentos escolhidos. Lá, onde até a vida pouco vale, tornam-se palpáveis, tão reais e consistentes como o pão que se come ou a água que nos mata a sede. E valem mais do que todos os tesouros do mundo juntos.
3º O diabo nunca é tão negro como o pintam e quando a coisa está mesmo preta, lembro-me sempre que a minha situação é melhor do que a de outros. Enquanto pernoitava com as ratazanas de Paris às quais emprestava um pouco do meu calor, era mil vezes mais afortunado do que muitos dos meus companheiros de diáspora que, em pequenos bandos de autênticos mortos-vivos atraídos pelas torres das gruas, deambulavam pela região à procura de trabalho. Escorraçados, sem roupa, sem comida, sem um tecto, alimentavam-se com lixo e dormiam dentro de manilhas de cimento sobre sacos de papel. “Lá fora”, repito, estavam dezassete graus negativos! Purgatórios destes podiam prolongar-se por semanas ou meses até uma alma misericordiosa os conduzir ao consulado para serem repatriados. As suas conquistas por terras gaulesas resumiam-se então a uma merenda dentro de um saco plástico, quinhentos escudos em dinheiro e um bilhete de regresso a Portugal, sem honra nem glória. Estes sim, tiveram uma aproximação imediata ao inferno.
A memória humana é curta e já ninguém se lembra das notícias dos jornais dos anos sessenta que davam conta do aparecimento ao longo da raia, ou nos carreiros dos Pirinéus, de corpos não identificáveis por se encontrarem “em avançado estado de decomposição”. Muitos compatriotas nossos embarcaram na senda da emigração e ficaram pelo caminho. Entre um a dois meses de esgotantes marchas a pé, de cabana de pastor em cabana de pastor, sempre de noite para não serem detectados pela polícia, alimentados com uma golada de Pedro Domecq e um pedaço de chocolate, expostos aos rigores do Inverno em climas de montanha, muitos sucumbiam ou eram simplesmente “deixados para trás”. Para não falar dos passadores desonestos, que depois de tosquiarem os seus carneiros (nome dado aos emigrantes clandestinos), espoliando-os de todos os valores que traziam consigo, os abandonavam como certos criminosos abandonam o seu animal. Outros foram vítimas dos carniceiros de forças da autoridade, nacionais e do outro lado, que não cito por respeito às instituições actuais. Atiravam a matar sobre quem tentava dar o salto, esquivando-se ao pagamento da respectiva “taxa”. Foram às dezenas, os que assim desapareceram, entre ele o filho do meu amigo Francisco G. de Alfaiates, abatido cobardemente quando tinha 25 anos. E muito mais teria para dizer, mas fica para um futuro post.
4º A primeira viagem foi também a mais importante da minha vida. A experiência da emigração fez de mim, sem qualquer dúvida, a pessoa que tenho sido. Aprecio a boa conta em que me têm amigos e familiares, mas acima de tudo, sinto-me muito bem na minha pele. Foi também uma excelente vacina contra erupções de natureza racista ou xenófoba e acredito, sinceramente, que aqueles que nos procuram com o intuito de fazer do nosso país a sua segunda Pátria, são da família. Porque Portugal, foi e será sempre uma grande família de emigrantes. Acarinhemo-los e exijamos às autoridades que façam o impossível para que eles e os filhos dos seus filhos nos adoptem. Tenho dito.

Juan

2 comentários:

  1. Belo texto...grande riqueza Humanística...
    Abraço,e boa viagem à Madeira...

    Paulo

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  2. Como co-editor do Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné, tive o prazer de publicar alguns textos do nosso anfitrião, Vítor Junqueira. Posso parecer suspeito nas minhas opiniões, porque já referi muitas vezes o quanto me dá prazer ler aquilo que ele escreve.
    Quem o conhece, apesar do seu modo terra-a-terra que só o dignifica, nota nele uma certa classe que não se coaduna com a sua meninice cheia de dificuldades. Quero eu dizer que parece mais ter sido um menino de bem a quem nunca faltou nada. Sendo médico, ainda por cima, parece que tudo lhe caiu do céu. Puro engano. É o exemplo de um homem que viveu tudo o que a vida tem de bom e de mau. As suas narrativas provam que uma pessoa apesar das dificuldades, pode chegar a um patamar que servirá de exemplo a quem se deixa abater pelas adversidades.
    O Vítor é um manancial de conhecimentos que a sua vida "errante" lhe proporcionou. É um modelo de HOMEM íntegro, porque estando fora da Pátria e podendo, sem problemas, fugir à Guerra Colonial, como muitos "heróis de pacotilha" fizeram, regressou e ofereceu-se para o local onde a guerra era mais complicada nas vertentes operacional, climática e terreno, a Guiné.
    Usado e abusado por quem movia os cordelinhos da guerra, o Vítor nunca se esquivou e cumpriu as missões que lhe atribuiram, sempre preocupado em evitar que algo acontecesse aos seus companheiros e subordinados, de cujas vidas se sentia responsável.
    Que tem a ver o que eu acabei de escrever com o post? Que, se o Vítor não teve um berço de prata, não impediu que se transformasse num homem que vale ouro.
    Obrigado Vítor por seres quem és e muito mais por seres como és.
    Carlos Vinhal
    Leça da Pelmeira

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