domingo, 20 de setembro de 2009

26 - K3 ou Saliquinhedim (Guiné- Bissau)

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No avião: Da direita para a esquerda, Rui Pedro, Juan e Manuel Neves.

Interlúdio no prgrama da viagem aos Bijagós

Nos dois dias seguintes à nossa chegada, sábado e domingo, aproveitámos para descansar, conhecer melhor a cidade (Bissau) e fazer o roteiro do “onde comer e o que visitar”. Logo no início da semana partiríamos para o K3, uma tabanca situada a cerca de 3 km a sul de Farim na margem esquerda do rio Cacheu, à qual me ligam laços que vêm desde o tempo em que aí cumpri uma parte da minha comissão militar. Restavam-nos ainda dois dias de folga para preparar a viagem aos Bijagós.
Durante meses, fui enviando caixas com ajuda humanitária (roupas, calçado, brinquedos, material escolar e medicamentos) expedidos a conta gotas nos contentores do nosso amigo Manuel Neves, empresário do ramo exportador com negócios na Guiné, tendo ficado armazenados nas suas instalações de Bissau até ao momento da entrega. Para esse efeito, o Manuel Neves colocou ao nosso dispor, graciosamente, uma das suas carrinhas na qual carregamos cerca de 1000 kg em artigos diversos repartidos pelos 50 volumes vindos de Portugal
No parque de estacionamento do hotel "24 de Setembro": Carrinha carregada com a ajuda. Ainda na imagem, Júlio Yá, o condutor e Juan.

Da esquerda para a direita: Manuel Neves, Rui Pedro, Sarifo e Juan.
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Na manhã de segunda-feira, tomámos o pequeno almoço bem cedo e partimos rumo ao K3. À frente, seguia a Ford Transit conduzida pelo Júlio Yá tendo como ajudante o Sarifo, ambos funcionários do Neves. À rectaguarada, o Mercedes do M. Neves onde eu e o Rui Pedro seguíamos à boleia. Primeira paragem no controlo de Safim onde os guardas de serviço à barreira de corda se interessaram pelo conteúdo dos caixotes. Depois de curta conferência chega-se à conclusão que o melhor é contribuir com uma pequena propina, o que nos permite fazermo-nos de novo à estrada. A nossa pequena caravana avança no seio de um trânsito intenso, cruzando com inúmeros veículos de todos os tipos e buzinas afinadas. Quase sempre a velocidade excessiva para o estado do pavimento, demandam a capital. Nas cabines ou caixas de carga, apertadas como sardinhas em lata, pessoas de todas as idades e etnias vão em busca da consulta médica que lhes pode melhorar a saúde ou salvar a vida, ou do trabalho mal remunerado que não encontram no mato. Algumas fazem-se acompanhar pelos parcos bens que esperam comercializar na grande cidade. Carregam sacos de carvão, molhos de lenha, hortícolas, mancarra, dendém e mangos que hão-de render bom dinheiro. O suficiente, talvez, para comprar aquela roupa, o rádio ou os óculos dos seus sonhos.
O dia apresenta-se particularmente bonito, com uma luminosidade que realça os diversos tons de verde da paisagem a contrastar com o negro do alcatrão esburacado mas ainda assim, transitável. O rádio de bordo sintoniza uma emissora FM que debita ininterruptamente música africana, ritmos frenéticos que convidam o corpo a agitar-se. Ao longo da estrada e na proximidade das aldeias que vamos deixando para trás, humildes bancas de comerciantes informais apresentam os seus produtos: cigarros vendidos à unidade, barras energéticas, rebuçados, sabonetes, refrigerantes à temperatura do chá. Segundo as placas, estamos no itinerário certo; Cumeré de má memória, antigo complexo militar português, terá sido o derradeiro local de reunião dos valorosos comandos africanos antes do seu fuzilamento, Nhacra, Mansoa. Esta cidade, a segunda ou terceira urbe mais importante do país, fervilha de agitação. São dez horas da manhã e o seu mercado popular ao ar livre oferece de tudo um pouco; além dos omnipresentes montinhos de carvão, mancarra e mangos, vêem-se cestos de pão, peixe seco, carne, vegetais, tendas de roupas e bancas de música em cassete e cd. Retomamos a marcha e pouco depois atingimos a povoação de Cutia, porta de entrada para as tabancas do Morés, outrora um bastião do PAIGC. Fazemos uma rápida visita ao torreão em alvenaria que noutros tempos serviu de abrigo a uma pequena guarnição militar portuguesa que tinha por missão controlar o movimento de guerrilheiros através de carreiros que se cruzavam na proximidade. Em Mansabá, estamos em plena região do Oio. Uma serração de madeiras, vários estabelecimentos comerciais, escola e posto de saúde, centralizam a actividade de uma população predominantemente rural que pratica uma agricultura de subsistência, cria gado e tem nas matas de cajueiros a sua principal fonte de rendimento.
Após a independência, o cajueiro veio substituir consideráveis extensões da floresta tradicional guineense. Trata-se de uma árvore de médio porte que produz um fruto composto de uma parte carnuda e doce envolvendo a semente ou castanha. A castanha de caju é muito valorizada nos mercados internacionais, dada a quantidade de produtos e subprodutos que dela se podem extrair, desde os óleos para a indústria de cosméticos, sabonetes, perfumes até aos bagaços utilizados na composição de rações para animais. Aos produtores é garantido um preço mínimo, mas todos os anos por volta do mês de Abril, atraca ao porto de Bissau um navio vindo da Índia carregando sacos de arroz que se destina a ser trocado quilo por quilo por castanha de caju. Fica assim garantida a subsistência das famílias quanto ao seu principal alimento, o arroz, servindo o excedente para adquirir outros produtos de primeira necessidade.
A nossa última tirada leva-nos ao Bironque, um antigo destacamento militar em plena selva onde estive integrado numa força empenhada na protecção dos trabalhos de reabertura do eixo Mansabá-Farim. A menos de meia dúzia de quilómetros revisitei Madina Fula, outro destacamento idêntico e com as mesmas funções do anterior, agora uma florescente tabanca onde se reagruparam populações dispersas pelo mato durante anos. À vista, 150 km percorridos a partir da base em Bissau, temos a tabanca do K3 também chamada Saliquinhedim, o nosso destino.
Num casamento indígena em Madina Fula, o Rui Pedro com duas crianças ao colo posa atrás da noiva de véu branco na foto.
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A população, que nada sabia acerca desta visita, está ocupada nos seus afazeres. Como em qualquer outro local de África, a curiosidade natural da criançada leva-as a aproximarem-se de nós. Algumas reconhecem-nos imediatamente de uma visita anterior, por isso partem em grande alvoroço regressando com uma autêntica multidão de adultos que sempre esperam por qualquer tipo de ajuda vinda de Portugal. Aos pequenos distribuem-se bombons, esferográficas, brinquedos. Com alguma dificuldade conseguimos que os miúdos se mantenham em fila para que a distribuição se faça de forma ordeira. Quando passamos aos itens reservados aos adultos, rapidamente reconhecemos a nossa incapacidade para concluir a missão. As pessoas, ávidas pelo seu quinhão de roncos (presentes), não aceitam as mais elementares regras de disciplina. Atiram-se umas sobre as outras, disputam peças de roupa ao rasgão, empurram-se, caem, espezinham-se, tentam apoderar-se do conteúdo do furgão. O quadro torna-se dolorosamente tenso e perigoso, há que tomar medidas para evitar um acidente que poderia colocar-nos em palpos de aranha. Por isso, decido encerrar a distribuição logo após a abertura dos primeiros volumes.O Idrissa é um dos três elementos do comité responsável pelo governo da tabanca. A sua residência fica próximo do local onde nos encontramos estacionados e vai servir de armazém para a mercadoria restante. Determino que seja esse comité a fazer a distribuição pelas famílias de acordo com a dimensão do agregado e suas necessidades, tendo o processo decorrido pacificamente segundo a informação que me chegou

O início da confusâo...
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Partimos então em direcção a Farim com a esperança de encontrar sítio para almoçar. Chegados à margem do Cachéu, da antiga jangada que fazia a travessia de pessoas e viaturas, nem rasto. Ficam os carros, embarcamos nós numa piroga com motor fora de borda que em pouco mais de cinco minutos nos despeja na outra margem, onde a aguardam outros passageiros que fazem daquele um próspero negócio. Mal chegados, apercebemo-nos de imediato que a cidade florescente de há três décadas e meia, está moribunda. Há muito que o alcatrão desapareceu por completo das ruas que são agora pavimentadas a pó ou lama de barro vermelho. A dignidade dos antigos edifícios públicos desmorona-se como as suas paredes por falta de manutenção. Resistem as tabancas tradicionais cobertas a capim, algumas ainda ostentam as velhas chapas de zinco corroídas pela ferrugem. Não há comércios e muito menos restaurantes. Os nossos companheiros guineenses partem à procura de algo que possa enganar o estômago até ao regresso à civilização. Sob um sol implacável, o calor é sufocante. À sombra de um renque de mangueiras tentamos ingerir umas sardinhas de conserva de origem marroquina que os nossos ajudantes descobriram não sei como. Intragáveis para o paladar luso, fico-me pelo pedaço de pão de boa qualidade e um gole de cola morna. De regresso a Bissau, passamos de novo pelo K3 onde é notável o ambiente de festa com imensas pessoas a saudarem-nos à beira da estrada. Páro para deixar uma palete de refrigerantes que será repartida por todos, ao dedal, literalmente.
A população do K3 na hora da despedida.

O Rui Pedro despede-se da miudagem

Latagão ao colo da irmã.

O bando dos reguilas do K3

Preparando-nos para atravessar o R. Cacheu em piroga.
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De novo en route, definham as expectativas de chegar à capital a tempo de jantar, começamos a pensar nas alternativas possíveis. Em Mansoa está a decorrer uma espécie de mostra de actividades económicas. Num recinto bem iluminado por um gerador, há diversos stands e começam a juntar-se visitantes. Dado que de comes e bebes não se avista nada de jeito, pé no acelerador e aí vamos de novo já que a esperança de encontrar algo aberto ainda não morreu. Vamos engolindo quilómetros e buracos perfeitamente camuflados pelos reflexos da laterite que nos roubam a noção da profundidade. Damos por eles porque a suspensão e as nossas costas não param de se queixar.
Chegamos a Safim cerca das dez da noite, ainda não é muito tarde. Mas se os Deuses não estão loucos, devem ter alguma coisa contra nós! Ao longo da estrada, em que a única luz é a dos nossos faróis, apercebemo-nos da presença de magotes de pessoas caminhando despreocupadamente, ora pelas bermas ora pela própria faixa de rodagem. No ar, o cheiro intenso a cachaça de caju obtida artesanalmente através da fermentação e destilação do fruto doce, põe-nos de sobreaviso quanto à possibilidade de alguém vir estampar-se contra o carro. O Mercedes reduz a velocidade até pouco mais da marcha a passo, e a Ford que segue logo atrás, faz o mesmo. Subitamente, um vulto atravessa a estrada em passo de corrida. Ouve-se um estouro enorme e um vulto rebola à frente do capot. É tudo aquilo de que me apercebo e, como sigo ao lado do Neves que encosta imediatamente, saímos para prestar assistência à vítima … que se põe de pé ainda antes de chegarmos à sua beira! É uma tia, como aqui se designam as mulheres grandes ou idosas. Está visivelmente nas graças de Bacco; perdida de bêbeda, dá dois passos, cambaleia e é preciso ampará-la para não agravar os estragos. Não se queixa, limita-se a cuspir saliva tingida de sangue misturada com alguma aguardente do excesso de carga. Numa avaliação sumária parece ter perdido alguns dentes ao embater com o maxilar contra o friso do tejadilho. O estrondo que ouvimos ficou a dever-se ao espelho retrovisor que, tendo sido forçado até ao limite, regressou à posição inicial com grande impacto por força da sua mola.
A mulher parece estar sozinha, mas apercebendo-se que a situação lhe podia render uns trocos, aparece um rapazote armado em chico esperto. Dizendo-se sobrinho da velhota, tenta negociar em seu nome a adequada indemnização e para isso, instala-se com a tia no banco traseiro, ao lado do Rui Pedro. A mulher não pára de mandar escarretas pestilentas para o ar. Algumas ficam presas ao forro do tejadilho, outras vão aterrar em cima do Rui que estoicamente suporta o vexame sem um pio. Já em andamento, a sinistrada parece recuperar um pouco da bebedeira. O sobrinho, convencido que os brancos não entendiam crioulo, incitava a anciã a pedir uma boa maquia.
- Eles são brancos, têm dinheiro por isso podem pagar bem, dizia ele.
Mostrou-se muito contrariado quando lhe dissemos que não pretendíamos negociar nada e que o nosso destino seria em primeiro lugar a esquadra de polícia e depois o hospital. O atordoamento da senhora dissipou-se um pouco mais, conseguimos perceber que residia com um filho no bairro militar situado na periferia de Bissau. Embora representasse sério perigo, entrámos no bairro, altas horas sem réstia de iluminação e lá conseguimos chegar à fala com o filho. No início, muito agressivo e exigente quanto a compensações, logo amansou quando lhe fizemos fazer saber que a única razão pela qual estávamos ali, era para que pudesse acompanhar a mãe à polícia e ao hospital.
Cordato e mais interessado nos CFA’s do que na dentuça da mãe, e perante a determinada recusa desta em deixar-se tratar, acabou por aceitar 15 mil francos e não se falou mais no assunto.
Com grande alívio, pusemo-nos a caminho do centro onde chegámos já passava da meia noite. Faltava resolver a questão do jantar. Feito o roteiro dos possíveis restaurantes ainda abertos, o desânimo foi total, nem vivalma. Propôs o Neves que fossemos a determinada cervejaria onde habitualmente serviam um balde de pipocas a acompanhar a bebida. Depois de uns goles e longa espera, veio a informação de que as ditas estavam esgotadas.
Dizem que quem se deita sem ceia toda a noite esperneia. Confirmo!
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Juan

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