Lago Baikal: wwwrussianspy.org
Catedral de Kazan, S. Petersburgo: wwwwikimedia.org
Há cerca de três meses decidi contratar uma empregada à hora para fazer umas limpezas lá em casa. Uma prospecção rápida, mostrou que apesar da tão propalada crise e consequente desemprego, não era fácil encontrar mão de obra nacional disponível. Virei-me então para a Mariska, uma bela ucraniana que trabalha no café onde costumo tomar a bica da manhã e perguntei-lhe se conhecia alguma amiga (assim como tu …!), fluente em português, disposta a assumir o lugar. Não prometeu nada, mas ofereceu-se para indagar. Esperei três ou quatro semanas até que resolvi questionar a Mariska quanto à falta de notícias. Disse-me que a espera se devia ao facto de andar à procura de alguém que fosse da sua inteira confiança. Por acaso ou talvez não, nessa mesma semana recebo uma chamada, mais ou menos nestes termos:
- Bom dia …olha senhor J. fala Svetlana, mulher para trabalhar horas nas limpezas.
Como tenho uma colega russa chamada Svetlana, perguntei-lhe se era realmente ucraniana.
- Não, eu sou de Rússia! Pode chamar Svetlana ou Svêta que é nome mais pequenino (diminutivo).
- Então e onde é que estás? Tens transporte? Sabes onde eu moro?
- Sim, tem carro mas não conheço casa. Estou com Mariska, no café.
- Muito bem, aguarda um momento que eu vou ter contigo.
Fui ao seu encontro. Ao chegar, apercebi-me que havia várias mulheres na cavaqueira, de pé, junto ao balcão. Falavam uma língua “lá daqueles lados” e riam muito. Algumas eram lindíssimas como são quase todas as mulheres do Leste, e estavam todas muito bem “arranjadas”. Rezei baixinho para que a minha futura empregada fosse uma delas!
Aproximei-me e perguntei:
Há cerca de três meses decidi contratar uma empregada à hora para fazer umas limpezas lá em casa. Uma prospecção rápida, mostrou que apesar da tão propalada crise e consequente desemprego, não era fácil encontrar mão de obra nacional disponível. Virei-me então para a Mariska, uma bela ucraniana que trabalha no café onde costumo tomar a bica da manhã e perguntei-lhe se conhecia alguma amiga (assim como tu …!), fluente em português, disposta a assumir o lugar. Não prometeu nada, mas ofereceu-se para indagar. Esperei três ou quatro semanas até que resolvi questionar a Mariska quanto à falta de notícias. Disse-me que a espera se devia ao facto de andar à procura de alguém que fosse da sua inteira confiança. Por acaso ou talvez não, nessa mesma semana recebo uma chamada, mais ou menos nestes termos:
- Bom dia …olha senhor J. fala Svetlana, mulher para trabalhar horas nas limpezas.
Como tenho uma colega russa chamada Svetlana, perguntei-lhe se era realmente ucraniana.
- Não, eu sou de Rússia! Pode chamar Svetlana ou Svêta que é nome mais pequenino (diminutivo).
- Então e onde é que estás? Tens transporte? Sabes onde eu moro?
- Sim, tem carro mas não conheço casa. Estou com Mariska, no café.
- Muito bem, aguarda um momento que eu vou ter contigo.
Fui ao seu encontro. Ao chegar, apercebi-me que havia várias mulheres na cavaqueira, de pé, junto ao balcão. Falavam uma língua “lá daqueles lados” e riam muito. Algumas eram lindíssimas como são quase todas as mulheres do Leste, e estavam todas muito bem “arranjadas”. Rezei baixinho para que a minha futura empregada fosse uma delas!
Aproximei-me e perguntei:
- Bom dia, qual das senhoras é a Svetlana?
A risota acabou, e lá do meio do grupinho, sai-me um pisco … um pinto molhado!
- Sou eu, diz uma rapariguinha com o dedito indicador no ar.
Apresentei-me e, pelos olhares, percebi que aquelas malinas estavam num descomunal gozo com a pobre cachopa. A causa da boa disposição das colegas prendia-se sem dúvida com insinuações maldosas sobre a futura convivência da Svêta com o patrão.
A minha empregada tem o corpo de uma adolescente. É uma mulher de trinta e tal, perto de 40anos, de estatura média a puxar para o franzino. Tem cabelo louro, com um corte pelo pescoço e uma franja espetada para a frente que ela compõe com um sopro. Os olhos são de um azul tão intenso, que eu suspeito serem reflexos das águas do lago Baikal.
É casada com um motorista de longo curso e vive há oito anos em Portugal. Tem dois filhos, a mais velha com oito anos, sofre de paralisia cerebral e o mais novo de quatro, nasceu cá. Profissionalmente, não lhe reconheço grande virtuosismo na área das limpezas, o que me despertou uma certa curiosidade quanto à sua profissão na Rússia. Esquivou-se delicadamente à resposta esclarecendo que não veio para Portugal por causa do dinheiro. Disseram-lhe que encontraria entre nós condições para uma melhor qualidade de vida do seu filho deficiente (frequenta uma Cerci), por isso não hesitou em abandonar a sua cidade natal, situada a trezentos quilómetros a nordeste de Moscovo, a caminho da Sibéria.
Mas a Svêta é também uma personalidade muito curiosa. Nem sempre aparece à hora combinada. Se se atrasa, já conheço o refrão:
- Olha senhor J., noite de ontem muito bom …calor. Nós gosta muito de dar voltinha. Meninos brinca, brinca … Manhã de hoje muuuuiinto sono!
Chega de malita (carteira) na mão, vestida de calça de ganga, T shirt e chinelo de enfiar o dedo. Arruma o seu Audi no jardim e muda de roupa. Uns trinta segundos depois, aparece-me de calças de ganga, T shirt e chinelos de enfiar o dedo! Tudo um pouco mais usado, é certo. Acompanho-a aos “pontos nevrálgicos” da habitação a requererem os seus cuidados e, sumariamente descrimino-lhe as tarefas do dia. A partir daí, a Svêta eclipsa-se! Desloca-se pelos três pisos da casa sem fazer o menor ruído. Não fala, apenas sussurra, e raramente se deixa ver. Quando tal acontece, vislumbro-a ao fundo de um corredor ou no limiar de uma porta com dois ou três baldes numa mão, um feixe de vassouras debaixo do braço e uma resma de panos do pó ao ombro. Não empeça, não colide, não toca em nada, e os seus passos não se ouvem. Parece uma sombra, só o desgraçado do aspirador a denuncia!
Nas raras vezes em que nos cruzamos, observo-lhe o rosto afogueado e a franjita da testa transpirada. Faz-me lembrar a conhecida figurinha tradicional da Rússia, a matrioska. Quando precisa da minha atenção para qualquer assunto, aborda-me silenciosa e invisível com um toque no ombro.
A semana passada, senti um desses toques subtis. Virei-me e na minha frente, a Svêta, com ar muito sério, diz-me num quase murmúrio:
- Olha senhor J., (o olha senhor, inicia todas as frases), dizer que mês de Setembro, férias, não trabalha.
- OK, Svêta. Vais então até à Rússia … e já têm data marcada? Vão de avião certamente. …
- Nããão. Vamos na carro!
- Como assim? Então tu não sabes que já existem voos directos para a Rússia?
Aí, um sorriso franco iluminou-lhe o rosto. Com uma expressão doce e paciente de quem tenta ensinar qualquer coisa a um burro, replicou:
- Sim, sabe muito tempo. Mas viagem na carro, três dias … férias muito bom. Umas vezes vai por Alemania, outras por Áustria ou República Checa, já foi também por Polónia e Eslováquia … Três dias (faz o sinal com os três dedos da mão), muito bom!
Gosta muito ver paisagem, fala com pessoas, prova comida deles …muito bom … muito bom!
Tem alma de viajante, minha empregada russa!
Prometeu-me que nas próximas férias eu poderia acompanhar a família. Aguardo ansiosamente o seu regresso. E o verão de 2010.
PS: Pouco depois de ter escrito este texto, falei com uma filha a quem a Svêta também presta alguns serviços. Disse-me que a nossa empregada é licenciada em economia e o marido é engenheiro de rodovias.
Juan
A risota acabou, e lá do meio do grupinho, sai-me um pisco … um pinto molhado!
- Sou eu, diz uma rapariguinha com o dedito indicador no ar.
Apresentei-me e, pelos olhares, percebi que aquelas malinas estavam num descomunal gozo com a pobre cachopa. A causa da boa disposição das colegas prendia-se sem dúvida com insinuações maldosas sobre a futura convivência da Svêta com o patrão.
A minha empregada tem o corpo de uma adolescente. É uma mulher de trinta e tal, perto de 40anos, de estatura média a puxar para o franzino. Tem cabelo louro, com um corte pelo pescoço e uma franja espetada para a frente que ela compõe com um sopro. Os olhos são de um azul tão intenso, que eu suspeito serem reflexos das águas do lago Baikal.
É casada com um motorista de longo curso e vive há oito anos em Portugal. Tem dois filhos, a mais velha com oito anos, sofre de paralisia cerebral e o mais novo de quatro, nasceu cá. Profissionalmente, não lhe reconheço grande virtuosismo na área das limpezas, o que me despertou uma certa curiosidade quanto à sua profissão na Rússia. Esquivou-se delicadamente à resposta esclarecendo que não veio para Portugal por causa do dinheiro. Disseram-lhe que encontraria entre nós condições para uma melhor qualidade de vida do seu filho deficiente (frequenta uma Cerci), por isso não hesitou em abandonar a sua cidade natal, situada a trezentos quilómetros a nordeste de Moscovo, a caminho da Sibéria.
Mas a Svêta é também uma personalidade muito curiosa. Nem sempre aparece à hora combinada. Se se atrasa, já conheço o refrão:
- Olha senhor J., noite de ontem muito bom …calor. Nós gosta muito de dar voltinha. Meninos brinca, brinca … Manhã de hoje muuuuiinto sono!
Chega de malita (carteira) na mão, vestida de calça de ganga, T shirt e chinelo de enfiar o dedo. Arruma o seu Audi no jardim e muda de roupa. Uns trinta segundos depois, aparece-me de calças de ganga, T shirt e chinelos de enfiar o dedo! Tudo um pouco mais usado, é certo. Acompanho-a aos “pontos nevrálgicos” da habitação a requererem os seus cuidados e, sumariamente descrimino-lhe as tarefas do dia. A partir daí, a Svêta eclipsa-se! Desloca-se pelos três pisos da casa sem fazer o menor ruído. Não fala, apenas sussurra, e raramente se deixa ver. Quando tal acontece, vislumbro-a ao fundo de um corredor ou no limiar de uma porta com dois ou três baldes numa mão, um feixe de vassouras debaixo do braço e uma resma de panos do pó ao ombro. Não empeça, não colide, não toca em nada, e os seus passos não se ouvem. Parece uma sombra, só o desgraçado do aspirador a denuncia!
Nas raras vezes em que nos cruzamos, observo-lhe o rosto afogueado e a franjita da testa transpirada. Faz-me lembrar a conhecida figurinha tradicional da Rússia, a matrioska. Quando precisa da minha atenção para qualquer assunto, aborda-me silenciosa e invisível com um toque no ombro.
A semana passada, senti um desses toques subtis. Virei-me e na minha frente, a Svêta, com ar muito sério, diz-me num quase murmúrio:
- Olha senhor J., (o olha senhor, inicia todas as frases), dizer que mês de Setembro, férias, não trabalha.
- OK, Svêta. Vais então até à Rússia … e já têm data marcada? Vão de avião certamente. …
- Nããão. Vamos na carro!
- Como assim? Então tu não sabes que já existem voos directos para a Rússia?
Aí, um sorriso franco iluminou-lhe o rosto. Com uma expressão doce e paciente de quem tenta ensinar qualquer coisa a um burro, replicou:
- Sim, sabe muito tempo. Mas viagem na carro, três dias … férias muito bom. Umas vezes vai por Alemania, outras por Áustria ou República Checa, já foi também por Polónia e Eslováquia … Três dias (faz o sinal com os três dedos da mão), muito bom!
Gosta muito ver paisagem, fala com pessoas, prova comida deles …muito bom … muito bom!
Tem alma de viajante, minha empregada russa!
Prometeu-me que nas próximas férias eu poderia acompanhar a família. Aguardo ansiosamente o seu regresso. E o verão de 2010.
PS: Pouco depois de ter escrito este texto, falei com uma filha a quem a Svêta também presta alguns serviços. Disse-me que a nossa empregada é licenciada em economia e o marido é engenheiro de rodovias.
Juan
Juan
ResponderEliminarQue exemplo maravilhoso duma mulher heróica, dum povo, duma cultura!...
Ficaria bem, aqui, uma pergunta ás milhares de "Svêta's" que estão entre nós: quantas se exporiam humilde e silenciosamente ao sacrifício de uma vida melhor por tão pouco?
Neste caso alguém poderia argumentar as deficiências da filha como causa da atitude, mas sabemos que não é assim.
Que lição (como as demais que tenho ouvido falar acerca desta gente) de que o trabalho é um bem, de trocas de valores, em que os canudos são (deviam ser) para serem usados quando a oportunidade e ou a competência se evidencia.Jamais para exibição de estatuto.
Teremos alguém Licenciado, sem trabalho,(dos milhares que se acoitam sob as asas dos Pais e na espera dum qualquer subsídio) a sujeitar-se a trabalho dito inferior? É que trabalho é sempre trabalho; jamais houve um, que fosse diferenciado pelos valores edificantes.
De referir, ainda, a vontade de conhecer novas gentes, novas terras, novos sabores e paisagens, por uma férias de escassos três dias até chegar á sua terra natal no mata saudades com os seus.
A minha homenagens a todas as Svêta's que vivem entre nós.
Santos Oliveira